Portugal "cumpre muito" a Convenção Europeia dos Direitos Humanos
Portugal "cumpre muito" a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ainda que persistam queixas sobre as condições nas prisões ou a liberdade de expressão, considera a juíza portuguesa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).
Em entrevista à Lusa, a propósito do Dia Internacional dos Direitos Humanos, Ana Maria Guerra Martins realça que Portugal é "dos países que cumpre mais" a Convenção, tendo em conta o rácio população-queixas.
"As pessoas têm a ideia 'ah, Portugal não cumpre muito'. Não é verdade", assevera, apontando três calcanhares de Aquiles. "Temos muitas queixas de presos" sobre as condições nas prisões, "que são um problema praticamente em todos os países", menciona.
O conflito entre liberdade de expressão e difamação, muitas vezes envolvendo órgãos de comunicação social, ainda encontra eco numa geração de juízes que continua a "dar uma certa prevalência" ao direito à honra. "Hoje em dia, os juízes nacionais já têm mais sensibilidade para estas matérias", compara.
Porém, frisa, o TEDH "tem uma jurisprudência muito clara", considerando a liberdade de imprensa "'o 'watchdog' [vigilante] da democracia", o que não quer dizer que os jornalistas não tenham deveres a cumprir.
Portugal tem também sido alvo de "algumas queixas" por incumprimento de obrigações do Estado em matéria de direito à vida, em casos de pessoas com perturbações mentais que cometeram suicídio.
Já a lentidão da justiça -- motivo de anteriores reparos do TEDH a Portugal -- "é um problema que está resolvido", porque os tribunais administrativos nacionais passaram a considerar "a morosidade processual um direito das pessoas".
Ana Guerra Martins recusa traçar um retrato negro e destaca que, dos 47 Estados do Conselho da Europa, "meia dúzia" (entre os quais Rússia, Turquia ou Polónia) concentram "muito mais que metade das queixas" e os restantes "têm uma situação bastante exemplar".
A juíza -- a quinta de Portugal no TEDH e a primeira mulher -- assumiu funções a 1 de abril de 2020 e diz que "ainda é cedo" para determinar o impacto da covid-19 na jurisprudência europeia.
Certo é que o TEDH tem recebido "muitas queixas relacionadas com as limitações" impostas pela pandemia, nomeadamente sobre vacinação. Os franceses, por exemplo, entupiram o Tribunal, com "mil queixas por dia", a propósito de terem de mostrar o passe sanitário em restaurantes e eventos culturais.
"Agora, uma coisa são as queixas que recebemos, outra coisa, completamente diferente, são as queixas a que podemos responder", distingue a professora de Direito.
"Decisões propriamente ditas em matéria de covid temos pouquíssimas, umas três ou quatro", contabiliza, acrescentando que todas foram consideradas "inadmissíveis (...), ou porque eram manifestamente mal fundadas, ou porque não preenchiam os requisitos mínimos".
Isto porque, "muitas vezes as pessoas recorrem ao Tribunal sem preencherem os requisitos de acesso: não são vítimas e não esgotaram os meios internos que existem", assinala, recordando que o TEDH "só deve atuar quando os tribunais nacionais falham".
Reconhecendo que "os tempos de crise são particularmente propícios à violação de direitos", a juíza nota que "em tempos de crise também há outros aspetos que têm de ser tidos em conta, por exemplo a saúde pública".
Mas "é importante que as restrições respeitem" certos princípios: terem um fim legítimo, existir uma relação entre a restrição e esse fim e serem aceitáveis numa sociedade democrática.
"O problema é que alguns governos se aproveitaram desta situação para estarem permanentemente em situação de emergência. Fecharam parlamentos, fecharam a maior parte dos tribunais... isso é que já pode passar aqueles requisitos mínimos", reconhece.
Em abril, o TEDH adotou um acórdão sobre a obrigatoriedade da vacinação (explicitando que não se referia à covid-19), no qual dá razão à República Checa na imposição da vacinação às crianças que frequentem a escola, contestada por alguns pais.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos admite restrições a direitos (como liberdade religiosa, privacidade, autodeterminação pessoal) "com base numa série de critérios e um deles é a saúde pública", explicita a juíza. "Como a não vacinação pode pôr em causa, ou põe em causa, a saúde dos outros (...), [a obrigatoriedade] pode ser compatível com a Convenção", avalia, realçando que "tudo depende da forma como a lei em concreto está feita".
A juíza portuguesa confirma que o número de queixas sobre discurso do ódio "aumentou" e destaca que o TEDH está "muito consciente dessas situações". O Estado de Direito "não tem obrigação de aceitar" partidos políticos que atentam contra a democracia, sublinha.
Ana Maria Guerra Martins considera que o TEDH "tem trabalhado de forma exemplar", apesar de precisar de mais recursos humanos, e que o problema está na execução dos acórdãos. "Temos muitos acórdãos que não são executados. A competência para supervisionar é do comité de ministros e não do tribunal. É uma questão política e diplomática", explica.