Biguiana: this is America
FOTOGRAMAS
Desde que Eugénia Fernandes chega da Madeira a Niterói em 1960 irá manter uma correspondência postal regular não só com os familiares na Madeira, mas também com os outros parentes que se tinham instalado nos Estados Unidos da América e na África do Sul. O seu ‘empenho’ na redação e envio de cartas garante a construção e ativação regular de canais de informação entre locais tão longínquos. E quem o destaca é Márcia, sua filha, ao afirmar que a mãe “nunca parou de fazer a rede”, que foi ela quem “uniu as pessoas todas” da família e que ainda hoje mantêm contacto com alguns parentes em vários locais do mundo “graças a esse trabalho” que “ela fazia com carta”. Nos anos iniciais da sua chegada a Niterói num contexto sócio-económico de algumas dificuldades, além de roupa enviada pelos navios para os parentes de Niterói, os parentes de Boston enviam fotografias, como este retrato da prima de Eugénia, Ana, que tinha migrado ainda adolescente para os Estados Unidos (tal como Eugénia para o Brasil), com a mãe e irmãs. Uma vez em Boston, Ana irá ganhar peso e por isso chamam-lhe “big Ana”. Nesta foto, Ana está a fazer malassadas (como vem assinalado no verso), numa receita da terra de origem, que alguns dos leitores deverão conhecer bem melhor do que eu. A propósito da perceção de Eugénia sobre a identidade brasileira, portuguesa e outras associadas a esses destinos de migração da família, Márcia refere: “Mãe achava que o brasileiro é mais solidário e que pessoas se relacionam mais. Ela foi a Boston há quinze anos atrás visitar os primos de lá: como a big Ana. E mamãe, que não sabe inglês, dizia ‘a biguiana’ sem saber o que isso queria dizer. E essa prima dizia assim, por exemplo: “ó Eugénia, bote a roupa na machine”, e mamãe ficava assim, sem entender. Ela achou que eles convivem pouco lá nos Estados Unidos da América.”
Penso que foi no mês de Fevereiro de 2017, mais de um ano após a minha pesquisa, que Márcia Fernandes, coloca uma imagem na sua timeline do Facebook acompanhada pelo seguinte texto: “Então uma parte partiu Para a América do Norte Foram Viver em Boston”. Essa e outra foto tinham sido então, em 2017, recebidas por email por Márcia, os originais encontrando-se precisamente em Boston, juntamente com a prima Carmelita que envia as suas digitalizações. De acordo com Márcia, “Ambas as fotos foram feitas na Madeira, (e cito), penso que eles iam ao Funchal para um estúdio fotográfico. Mamãe conta que após um casamento, ou um evento similar, as pessoas iam de carro ao Funchal e neste estúdio, que parece ser perto da Sé, posam para a foto que se tornava o único registro da ocasião”. Essa segunda imagem, que deve datar de 1915, retrata os avós maternos de Márcia, Augusta e José Marinheiro (que de acordo com Márcia tinham uma casa humilde na Fajã dos Padres que é hoje “um hotel”. Estão: “ambos em pé na fila de trás junto com outros jovens da família, irmãs e cunhados”, estando o bisavô “sentado na fila a frente” e mesmo a tetravó de Márcia. É então a possibilidade de dar a ver o rosto dos antepassados há muito idos (ou sumidos como referia uma outra informante minha no Brasil ao vasculhar as fotos da sua infância na Amazónia, e a propósito do seu retrato desvanecido na superfície do papel), que leva a prima Carmelita a fazer viajar imagens essas imagens por email destinando-as à família em Niterói.
O que dizer desses outros trânsitos das imagens? Que são elementos hoje tão banalizados, meros indicadores de que a circulação das imagens é agora essencialmente feita através dos seus múltiplos clones digitais, ativando-se um desejo de memória através de uma imagem com décadas e que durante décadas esteve guardada num baú um Boston ou circunscrita às molduras de uma sala de estar, onde “assistia” a refeições com malassadas na ementa, mas mais provavelmente ainda no quotidiano a refeições de hamburgers.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.