Crónicas

Envelhecer como um gato

Os gatos existem apenas para termos a sensação do que é fazer uma festa no dorso de um tigre

Os dois gatos estão velhos e só às vezes correm pela casa ao fim da tarde, já não são os mesmos, dormem mais, brincam menos e nota-se o estrago do tempo. São lentos, falham alguns saltos para a mesa da cozinha e miar parece uma súplica como que a dizer que sim, a artrose dói. Não sei se os gatos têm artrose, mas sei que envelhecem como nós.

Quando resgatei a gata de uma caixa de gatinhos da Sociedade Protetora dos Animais Domésticos não sabia bem o que era viver com um animal doméstico. Lá por cima, no Laranjal, os animais de companhia eram estimados e amados, mas naquela medida antiga. Comida, uma tigela de leite e uma casa de madeira para o cão. Os gatos, que foram poucos, dormiam onde calhava, todos na rua. O veterinário era assunto de ricos e, por isso, a saúde dependia da sorte.

Em certa medida, não era diferente do que era a vida das pessoas. Não se ia muito ao médico, as velhas diziam que descobriam doenças e tiravam o sossego que dá viver na ignorância. A consulta da ‘Caixa’ era para casos extremos, assim um lugar onde se ia às vacinas ou coser alguma ferida mais funda. Havia excepções como a minha mãe que, com as manias modernas, obrigou-nos a andar de botas ortopédicas e ainda me levou ao dr. Castanheira a ver se havia remédio para acabar com a cama molhada todas as noites.

O que espantou a vizinhança, a quem fazia pouco sentido tratar o assunto no médico quando havia tanta receita mais eficaz e barata como uma sova com urtigas nas pernas. A ‘manha’ ia-se num instante. E, de facto, devo a minha saúde mental à sorte e à minha mãe que, entre uma crendice sádica, preferiu a ciência e um conselho clínico. Parece normal visto daqui, de 2021, mas o Laranjal dos anos 70 era menos clemente para as pessoas e, claro, ainda mais cruel para os animais.

Se algum vizinho mais consciente e preocupado fosse com o cão – que nem era de raça – ao veterinário, o mais certo é que houvesse risada. Ora então o “cachorro também ia ao doutor”. E, por isso, quando ficavam doentes, os bichos morriam. As fêmeas eram mortas à nascença, para não tirar criação. Poucos chegavam a velhos, a ser assim como estes dois gatos com quem partilho os meus dias há 16 anos.

São tantos anos que perdi a noção do que é ter os sofás sem pêlos e unhadas ou fazer compras sem levar a areia e comida. Ou de ser uma pessoa normal, daquelas que não falam sozinhas em frente à prateleira de latas para gatos coisas como “estas não que eles não gostam”; as mesmas que partilham as angústias e as manias dos seus pequenos tiranos felinos que só bebem água da torneira do lavatório da casa de banho. Os mesmos gatinhos a quem desculparam todas as arranhadelas violentas, que ainda assim é melhor do que tentar cortar as unhas.

Contrariedades que, nas minhas contas, valeram por todas as tardes que somamos juntos. O silêncio, a elegância a esticar as patas, a roçar a cabeça nas minhas pernas por carinho e para lembrar que é hora de ir jantar e eles têm fome. Têm má fama, as artes de um gato são imprevisíveis, mas, no fim, talvez seja tudo por causa daquela teoria de que os gatos existem apenas para termos a sensação do que é fazer uma festa no dorso de um tigre. Não sei, só sei que gosto muito de dividir o sofá com os meus dois gatos velhos.