Crónicas

As Mães não são feitas para ficarem quietas e caladas

Os Direitos das Mulheres incluem direito a ter um tratamento digno e respeitoso no que diz respeito aos cuidados obstétricos

É hoje que, simbolicamente, um grupo de mulheres da Região se juntará ao movimento nacional que visa representar todas as pessoas que viveram ou testemunharam a existência de violência nos cuidados de saúde materna e obstétrica em Portugal. Esta partilha de testemunhos e manifestação de solidariedade acontecerá pelas 15:00, junto ao Conselho Médico da Região Autónoma da Madeira da Ordem dos Médicos, na Rua de São Pedro, e tem como ponto de partida o parecer negativo que o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia emitiu, em finais de outubro, ao Projeto-Lei intitulado «Reforço da proteção das mulheres na gravidez e parto através da criminalização da violência obstétrica», apresentado pela deputada não-inscrita Cristina Rodrigues.

Basicamente o parecer contesta que exista violência obstétrica em Portugal e considera que tal não se aplica à realidade do nosso País, por comparação com países onde «não se respeitam os direitos humanos, onde mulheres, grávidas e crianças morrem ou ficam com sequelas graves, por falta de assistência médica, onde as taxas de mortalidade materna podem ser mais de cento e cinquenta vezes superiores às de Portugal», suavizando o problema com termos como «insatisfação» ou «desrespeito».

De facto, tem sido longo o caminho que o País tem feito no que diz respeito à saúde materno-infantil ao longo do século passado até aos nossos dias. É de realçar e reconhecer o trabalho de especialistas como Alfredo da Costa e Adelaide Cabete, ambos dedicados à causa da importância dos cuidados materno-infantis e à importância de unidades hospitalares especializadas em saúde materna ou Cesina Bermudes, pioneira em Portugal do «parto sem dor», especialidade sobre a qual recaía uma condenação católica que vigorou até 1956. O trabalho destas pessoas – e de muitas mais que aqui não invoco – contribuiu e continua a contribuir para uma diminuição radical da mortalidade materna, mortalidade perinatal (entre a 28.ª semana de gestação e o sétimo dia de vida) e neonatal (primeiras quatro semanas de vida). Também a Organização Mundial de Saúde estabelece o acesso universal a cuidados materno-infantis como fazendo parte das medidas fundamentais para que se reduza drasticamente as taxas de morbidade e mortalidade materna.

Todo este percurso que tem sido feito é de celebrar. No entanto, é também a Organização Mundial de Saúde que alerta para o facto de que «muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde.» e que isso constitui «uma violação da confiança entre as mulheres e as suas equipas de saúde». E considera que é necessário investir na eliminação do desrespeito, dos abusos e dos maus-tratos durante o parto. Ora, tenho para mim que «abusos», «maus-tratos» e «desrespeito» pela vontade das mulheres são formas de violência. Aliás, no relatório das Nações Unidas, datado de 2019, intitulado «A human rights-based approach to mistreatment and violence against women in reproductive health services with a focus on childbirth and obstetric violence» (e que é fonte de consulta do parecer) e que é indicado como uma das fontes consultadas do parecer, é considerado uma evidência que maus-tratos e violência contra mulheres em instituições de saúde acontecem em todo o mundo e afetam mulheres de todos os estratos sociais e económicos.

O parecer também manifesta preocupação perante o facto de o Projeto-Lei em análise poder promover o afastamento das grávidas das instituições de saúde, «deixando-as vulneráveis a grupos que as podem explorar, sem qualquer regulação governamental ou profissional».

O facto de o Projeto-Lei usar o termo violência obstétrica e visar algumas más práticas que ainda acontecem não será uma razão, por si só, para as consequências apontadas. Parece-me que contribuirá mais para isso o facto de se não dar voz às mulheres e desmerecer as suas «insatisfações», o facto de muitas vezes se agir como se as mulheres não fossem agentes ativos em todo o processo. No relatório das Nações Unidas que já citei, é descrito que às mulheres é frequentemente negado o direito a tomarem decisões informadas sobre os cuidados que recebem durante o parto ou em matéria de saúde sexual e reprodutiva, e que tal constitui uma violação dos seus direitos humanos, uma violação cuja responsabilidade poderá ser atribuída ao Estado e ao Sistema de Saúde. E nas suas conclusões, é reforçado que os Direitos das Mulheres incluem direito a ter um tratamento digno e respeitoso no que diz respeito aos cuidados obstétricos, sem qualquer tipo de discriminação e violência, em que incluem comportamentos sexistas e violência psicológica.

Pesando tudo isto, serei uma das mulheres que estará hoje, pelas 15:00 na Rua de São Pedro. Porque conheço relatos de mulheres destratadas durante o parto; relatos de mulheres cuja perda de um embrião ou de um feto foi considerado algo menor; conheço relatos de mulheres insultadas ou desmerecidas durante a gravidez e puerpério, tratadas como se fossem acéfalas e sem querer. Porque me lembro bem da primeira noite com o meu filho, de tudo o que me foi dito naquela que é uma das fases de maior fragilidade para qualquer mulher. E não. Na altura não apresentei queixa. Infelizmente.