Crónicas

“Memento Mori”

O mês de novembro começa sempre de forma pouco “simpática” e, por assim dizer, entra logo “a matar”: Dia de Todos os Santos e Dia dos Fiéis Defuntos. Ou seja: de uma forma ou de outra, por muito ou pouco conectados que estejamos com a tradição religiosa, o que evocamos nestes dias é a realidade mesma da morte, a “irmã morte”, como rezava o “Poverello” de Assis, naquela profunda intuição de quem vê na morte a consumação da vida, una e única na sua inteireza de existência plena. Isto mesmo era lembrado por Tolentino Mendonça na sua crónica de sábado passado, onde fala do “Memento Mori”, segredado por um escravo ao ouvido do seu senhor quando festejado ou aplaudido em triunfo (“Lembra-te que és mortal”). Mas, não haverá hoje uma dimensão humana tão recalcada, ocultada, disfarçada e artificializada como a realidade da morte. E, no entanto, ela é inseparável da essência mesma da vida.

A celebração daqueles dois dias tão especiais acorda-nos para a perceção da nossa própria finitude, ao mesmo tempo que a memória torna mais presentes a comunhão e a esperança face ao modo como vivemos a nossa própria humanidade. Desde tempos imemoriais, os testemunhos de que a história dá notícia quanto à natureza do “animal humano” são precisamente os relativos às crenças e ritos fúnebres. No devir civilizacional, essa dimensão da essência e destino do homem sempre foi representada na sua verdade irrecusável. Mas o dealbar da modernidade legou-nos a experiência do desconforto e da recusa, que a contemporaneidade só veio acentuar:

“Na sociedade da imagem a morte torna-se sempre mais invisível e anónima, como que perdendo existência civil (...) Um dia se refletirá sobre a contemporânea ocultação da morte, sobre este embaraço social em que a morte se tornou, sobre esta espécie de afasia que deflagrou em nós como um sintoma a que não prestámos a atenção devida”, escreve Tolentino Mendonça. Mal percebemos, então, que o reverso dessa recusa só nos traz superficialidade e inconstância. Ou, como dizia Heidegger, lança-nos na “vida inautêntica”, pois se o homem é “um ser para morte”, é porque a vida é a dádiva absoluta que lhe resta, o campo (sempre precário) do sentido e da esperança à conquista da sua própria humanidade. Passarmos pela vida cem por cento distraídos, na verdade não ajuda muito: nessa alienação fundamental de nós a nós próprios, na incapacidade de integrar na vida a “irmã morte”, ficamos apenas, em negação, a antecipar o fim...

Não é certamente por levar a sério qualquer destas verdades antropológicas que o inenarrável parlamento português, já com poucas horas de vida e praticamente “ligado à máquina” da maquinaria constitucional, trouxe ainda para aprovação a “lei da eutanásia”: manobra espúria e ilegítima que atinge o cerne de um princípio jurídico e civilizacional, como é o da inviolabilidade da vida humana; manobra que ressuma do pior do modernaço português na versão politicamente correta da tribo dos “fraturantes”, em desespero alcandorada a legislação nacional! Como se “aquela gente”, antes de ir para casa, e mais protetora da “causa animal” que dos humanos que já não servem para nada e que é preciso “apagar”, ainda viesse esbracejar um último estertor sobre os “reacionários” que eles muito gostariam de “cancelar” ... Coitados: um dia perceberão, sem remédio, que a morte é a única realidade verdadeiramente “fraturante”!