Ler
A maior parte das línguas neolatinas (espanhol, italiano, francês) manteve reconhecível o étimo latino
Este é um artigo para quem, como eu, ama as palavras. Também é um artigo assumidamente à margem do actual ambiente de turbulência social e política motivada pela persistência da crise pandémica.
Falemos, um pouco, da palavra LER. Aparentemente, ninguém questiona o seu significado. Ler é interpretar o que está escrito; proceder à leitura de; decifrar através do conhecimento de um código (ex.: ler uma partitura de música, um mapa ou um gráfico estatístico); fazer a interpretação de (ex.: a obra de um filósofo); interpretar; perceber; no âmbito da informática: reconhecer dados gravados, por exemplo, num disco rígido ou num CD; numa asserção mais exotérica: predizer, adivinhar o futuro.
Se procurarmos a origem próxima da palavra, encontramos o galego-português “ler” que, por sua vez, deriva do latim “legere(la)” “legĕre”, infinitivo do verbo “legō” (“ler, ajuntar”), comparado com o grego antigo “λέγω” (”dizer, falar, recolher”). No latim, “legere” significa colher, recolher, apanhar, enrolar, tirar, escolher, captar com os olhos. A maior parte das línguas neolatinas (espanhol, italiano, francês) manteve reconhecível o étimo latino (“leer”, “leggere”, “lire”).
Talvez seja menos conhecido, dos meus leitores, que a palavra latina “legere” teve um significado que provinha da… agricultura. Queria dizer, nessa época, “colher, escolher, recolher” (os melhores frutos, os melhores cachos de uvas).
Sofreu uma actualização para “obter informações através da percepção das letras” porque implica, evidentemente, escolher e definir letras e palavras. Equivalendo, portanto, à expressão latina “legere oculis” (“colher com os olhos”).
Será menos perceptível que tenha dado origem às palavras ELEGER e ELEIÇÃO. No entanto, é obvio que ambas as palavras indicam uma escolha entre vários candidatos. Menos perceptível, ainda, ter dado origem a ELEGÂNCIA, ELEGANTE, embora facilmente se descubra que tiveram origem noutra forma de dizer “escolher” em latim: “Eligere” que deu “Elegans” com o significado de pessoa muito exigente, que escolhia muito, que não aceitava facilmente o que lhe apresentavam.
Continuando, chegamos a LENDA, LEGENDA (do gerúndio latino “Legenda” com o sentido de “a serem lidos”).
Também LEGIÃO (em latim “legio”) significava um grupo de homens que eram escolhidos para prestarem serviço militar por serem considerados aptos.
COLECÇÃO e COLECCIONAR têm idêntica origem e significam escolher entre objetos para formar um conjunto com características comuns. Novamente com o sentido original de “ler”: colher, escolher.
Talvez mais fácil seja chegar a INTELIGÊNCIA que é a capacidade de escolher adequadamente entre diversas opções possíveis. De equacionar e resolver problemas. “Interlegere”, ler entre as coisas possíveis.
Mais simpático é referir os “amigos DILECTOS”, os amigos realmente amigos, com origem em “diligere” (amar, apreciar, considerar). Também requer uma “leitura” e uma “escolha”. Que também originou DILIGENTE: alguém dedicado, zeloso, cuidadoso, trabalhador, aquele que se dedica a uma causa ou obrigação; e DILIGÊNCIA: acção de um órgão ou serviço oficial (ex.: tribunais).
Durante a Idade Média havia um carácter sagrado na leitura e na escrita, sendo o seu ensino e prática apenas obrigatório aos que seguiam a vida eclesiástica ou legal (jurídica). Foi assim que, durante muitos séculos, a igreja monopolizou o ensino e arvorou-se em censora. Pretendeu, desse modo, e de certo modo conseguiu,
fazer com que, mesmo os laicos, estivessem sujeitos a um controlo apertado do que escreviam, publicavam e liam. Os livros eram escritos e copiados nos conventos por monges especializados: os copistas.
Só a partir do século XI, com o desenvolvimento da manufactura, do comércio e com o afluxo das populações às cidades, o ensino foi, progressivamente, se libertando do monopólio da igreja e sendo acessível a mais cidadãos.
Foi necessário Gutenberg desenvolver um sistema mecânico de tipos móveis que permitiu o aparecimento da Imprensa e teve um papel fundamental no desenvolvimento da Renascença e da Reforma, e na Revolução Científica, lançando as bases materiais para a moderna economia, para a disseminação em massa da aprendizagem e para o desenvolvimento da Ciência.