Crónicas

Zaragatoas e vacinas, vacinas e zaragatoas

Quarenta e sete anos passados sobre o nascimento da Autonomia da Madeira, ainda temos tudo, ou quase tudo, por fazer, para sermos uma terra de futuro

1. Disco: “Tó Zé Brito (de) Novo” revisita as músicas do compositor, que foi do Quarteto 1111, e que passou por muitos projectos nacionais, até se fixar como A&R da EMI. Nunca fui muito à bola com as suas músicas, a voz nunca me convenceu. Este disco refaz muito do que compôs, pelas vozes de Ana Bacalhau, António Zambujo, Camané, Catarina Salinas, Joana Espadinha, Miguel Guedes, Mitó, Samuel Úria, Selma Uamusse, Rita Redshoes, Tiago Bettencourt, Tomás Wallenstein, Benjamim e B Fachada, uma constelação de excelentes intérpretes nacionais.

2. Livro: “Tyll. O Rei, o Cozinheiro e o Bobo”, de Daniel Kehlmann, foi uma agradabilíssima surpresa. Um autor que não conhecia, mas um estilo que muito aprecio. O livro conta a história de Tyll Ulenspiegel, um andarilho brincalhão, um bobo da corte, e das suas aventuras peripatéticas pela Europa durante a Guerra dos Trinta Anos. Uma escrita exuberante e incomum na ficção histórica, cheia de figuras lendárias, personagens e eventos históricos reais, misticismo, erudição, diplomacia e sofrimento. Altamente recomendável.

3. Já tive COVID19. E não foi fácil. No meu caso, os tais 14 dias não chegaram. Foram 19. Por isso, sei o que custa e, acreditem, para quem tem sintomas não é fácil. Eu tive-os todos. Tive a sorte de não ter ficado com sequelas. A mesma sorte não teve a minha filha mais velha que ainda faz fisioterapia pulmonar.

Esta foi a minha primeira dose da vacina.

Porque acredito na ciência e nesta predomina, esmagadoramente, a opinião da validade da vacinação, levei a segunda dose. Porque tudo isto é novo, é normal que o “caminho se faça caminhando”. Logo, quando passarem os, agora, 5 meses da última dose, lá estarei para levar o reforço.

É verdade que a vacina não imuniza totalmente. Mas é verdade que a sua toma, atenua a sintomatologia e diminui significativamente a possibilidade de morte.

Posto isto, cá vai bomba: aceito que, em liberdade, haja quem não queira ser vacinado pelos motivos que entender que sejam válidos para si, desde que isso não tenha a ver com o circuito integrado do Bill Gates, ou com ataques de autismo, ou com os “argumentos” daquele ex-juiz atoleimado.

As medidas anunciadas na quinta-feira, por Miguel Albuquerque, não tinham nem pés, nem cabeça. O teste era obrigatório. Quem o não fizesse ficava sem vida, coarctado na sua liberdade. Não podia ir ao café, não podia ir comer fora, não podia assistir a um espectáculo ou ir ao cinema, etc.

E, a bem dizer, a vacinação, de um modo retorcido, também. Quem a não levasse ficava coarctado na sua liberdade. Não podia ir ao café, não podia ir comer fora, não podia assistir a um espectáculo ou ir ao cinema, etc. E isto prefigura uma espécie de isolamento a quem não cumprir com tamanhas idiotices ilegais.

No meu caso, porque vacinado, coisa que fiz em consciência, querem obrigar-me a violar, todas as semanas, o que tenho de mais sagrado: o meu corpo.

A propriedade do meu corpo integra um dos direitos naturais. São inalienáveis e irrevogáveis num Estado que se quer de direito democrático. De Aristóteles a São Tomás de Aquino, de Hobbes a Locke, de Thomas Jefferson a Rousseau, são inúmeros os pensadores a quem só faria bem que esta gente que nos governa fosse ler. Nem que fossem resumos, que os há e muito bons.

Aquilo que se devia ter pedido, foi determinado. E isso é inaceitável. Graças ao bom senso de alguém, quando o chorrilho de restrições foi tornado para a resolução do Governo Regional, estas aparecem sobre a forma de recomendações. Isso aceita-se, pois é assim que se trata um povo evoluído que pode decidir, por si, o que pretende fazer. Um povo que, individualmente, sabe escolher o seu caminho.

4. Há muitos dias em que me sinto a viver numa distopia pandémica. Como se fosse uma personagem do “1984” do Orwell. Uma espécie de pesadelo, onde a acção dos homens é muito pior do que os efeitos da doença. Caramba, não há maneira de acordar.

5. Na semana passada, o Voldemort da política nacional deu um murro em cima da mesa e anunciou que, nos Açores, o acordo com o PSD, que sustenta o Governo Regional, estava acabado. Na 6.ª feira, o único deputado que resta ao partido “daquele que não se pode dizer o nome”, no Parlamento açoriano, deu uma conferência de imprensa. Não percebi nada. E não teve nada a ver com a pronúncia, porque tenho bom ouvido. Mas resultou. Menos de duas horas depois, “o coiso” deu o dito por não dito e ficou tudo na mesma.

6. A autonomia não questiona a soberania. Se não temos sistema fiscal próprio, isso deve-se aos partidos da equação, que nestes anos todos pouco ou nada fizeram para isso acontecer. Não fosse a proposta de Miguel de Sousa, que deixaram cair sem glória, e não havia nada.

Nem um grupo de trabalho que estudasse o assunto. Atira-se com essa possibilidade para o ar, ocasionalmente, para mostrar serviço.

Partir para um sistema fiscal próprio obriga a estudo, muito estudo. O problema não está na legislação portuguesa, como já o disseram inúmeros fiscalistas, entre os quais Lobo Xavier. O problema, a haver, está na legislação europeia. Esse grupo de trabalho teria de esmiuçar os Acórdãos de Gibraltar (Auxílios de Estado — Regime de auxílios notificado pelo Reino Unido relativamente à reforma do imposto sobre as sociedades do Governo de Gibraltar: processos T-211/04 e T-215/04) e Açores (Auxílios de Estado sob a forma fiscal: O caso Açores - Proc. C-88/03) do Tribunal Europeu.

Competiria, a esse grupo, criar argumentação válida que justificasse o sistema fiscal próprio. Um grupo que fosse o mais multidisciplinar possível que, apoiado em evidências científicas e jurídicas, criasse o suporte teórico e legal para a criação desse sistema tão essencial para o nosso desenvolvimento, que apoiasse a argumentação na ultraperificidade da Madeira, na sua pouca diversificação económica, na necessidade de criar riqueza de modo a que possamos viver, com dignidade, dos rendimentos que geramos.

Um sistema fiscal que se aplique em toda a região, que seja claro e preciso, que ganhe a preferência dos cidadãos, seja entendível pelas empresas, promova a estabilidade, aumente a eficiência do sector público acabando com o supérfluo, e procure o desenvolvimento e a criação de riqueza.

No imediato, devia o Governo Regional usar as ferramentas que já tem ao seu dispor e assumir o compromisso de, rapidamente, atingir o diferencial de 30%, face às taxas de IRS e IRC verificadas no continente português, em todos os escalões e que o mesmo ocorresse com o diferencial de IVA, baixando-o para os 16%. Estas medidas são exequíveis e não necessitam de qualquer alteração do normativo legal. A decisão passa, só, pela vontade do Governo Regional.

Só assim nos tornaremos competitivos.

7. Quarenta e sete anos passados sobre o nascimento da Autonomia da Madeira, ainda temos tudo, ou quase tudo, por fazer, para sermos uma terra de futuro. A qualificação dos madeirenses de modo a aumentar a produtividade; o reforço da inovação, a capitalização do tecido empresarial; a valorização e qualificação do território; a modernização dos serviços públicos; o combate às desigualdades, com a criação de mais equidade; a consolidação alicerçada num processo de reforma da Autonomia que garanta a qualidade das políticas públicas. Para lá do betão, dos túneis e do alcatrão, muito pouco foi feito.

A Autonomia tornou-se centralizadora; não reformou o sistema de eleição avançando para círculos uninominais e para um círculo de compensação regional; não remodelou o sistema político, mantendo-se a partidocracia em que vivemos; pouco fez para que o Ensino efectuasse a reforma de que tanto precisa, soltando-se dos corporativismos em que chafurda; não deu nenhum passo no sentido de criar um sistema fiscal próprio, de fiscalidade reduzida; deixou a saúde degradar-se, ao acabar com o paradigma da colaboração com o sector privado.

A nossa Autonomia, que se queria progressiva, definha. É urgente a mudança.