Em defesa da Filosofia
A verdade é que a violência contra mulheres e meninas, nomeadamente no contexto de relações pessoais, é tão expressiva em termos globais porque durante muito tempo foi aceite como sendo natural
«”Mulher minha, se me enganar, leva um tiro a meio da testa”, ou “as mulheres só chulam os homens”, “se uma mulher trabalhar depois anda pelos cafés e não quero uma mulher jogada aos outros”, “Eu não digo mulheres como a professora, que são estudadas” e poderia continuar. Tem 17 anos, uma Mãe que alimenta estas sentenças e eu não sei o que fazer com isto.»
Em 2010 escrevi isto depois de uma aula em que se abordou o tema da violência contra as mulheres e a forma como está subjacente nos padrões culturais que estruturam a nossa forma de estar em comunidade, como faz parte dos esquemas de género que estruturam as nossas relações.
A verdade é que a violência contra mulheres e meninas, nomeadamente no contexto de relações pessoais, é tão expressiva em termos globais porque durante muito tempo foi aceite como sendo natural e até desejável – e em alguns contextos culturais e religiosos é ainda dominante a perceção de que é natural. Mas não é menos verdade que em muitos locais onde oficialmente deixou de ser considerada normal, a verdade é que no contexto do dia-a-dia continua a ser aceitável e desculpável, continua a estruturar a forma como as pessoas se relacionam.
Segundo os dados mais recentes veiculados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada três mulheres foi vítima de violência física ou sexual, muitas vezes no contexto de um relacionamento amoroso. Este número não se alterou ao longo da última década e é um problema global que afeta todos os países.
Em Portugal, segundo os últimos dados revelados no Relatório Anual de Segurança Interna (referente a 2020), os dados disponíveis são os seguintes:
Em relação ao crime de violação sexual, 92,3% das vítimas são do sexo feminino, sendo que quem agride é maioritariamente do sexo masculino (99,1%).
Nos casos de abuso sexual de crianças, 76,9% das vítimas foram meninas, e também neste caso uma grande maioria das pessoas agressoras são homens (92,9%). Em 52,4% dos casos, quem agride é um/a familiar da vítima.
No registo de ocorrências em contexto de violência doméstica, 75% das vítimas são mulheres e 81, 4% das pessoas denunciadas como agressoras são homens. Em 46,5% dos casos, o contexto é o de um casamento ou relacionamento amoroso. Em 15% do total das situações reportadas como violência doméstica, a relação amorosa já tinha terminado. Na sua expressão mais violenta, das 32 pessoas assassinadas, 27 foram mulheres. Foram também assassinadas duas crianças (uma do sexo masculino outra do sexo feminino) e três homens.
A Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, revelou esta semana que até ao final do mês de setembro foram assassinadas, em contexto de violência doméstica, 14 mulheres e cinco homens, números que considera suficientemente inquietantes para continuarmos a trabalhar na prevenção e combate da violência em contexto de intimidade.
São dados como estes que justificam a existência de um dia que assinala a importância do combate à violência contra mulheres e meninas (o dia 25 de novembro), um combate que está plasmado em vários compromissos internacionais, europeus, nacionais e regionais.
Estes dados, que expressam a nossa realidade, atestam que o que aquele meu aluno dizia está ainda muito presente entre nós, na forma como nos organizamos e nos relacionamos, na forma como continuamos a desvalorizar o problema ou a considerar que é um problema só das mulheres. Não é. É um problema cuja resolução depende de todos e todas nós, que recebemos e reproduzimos estereótipos sem os questionar, que os partilhamos e transmitimos às gerações seguintes muitas vezes sem pensar no quanto estes esquemas concetuais são prejudiciais – e que por isso têm de ser desconstruídos.
Aconteceu na passada quinta-feira o Dia Mundial da Filosofia, uma efeméride iniciada pela UNESCO, em 2005, e que determinou que a terceira quinta-feira do mês de novembro seria dedicado à filosofia.
Desde então, todos os anos é proposto um grande tema, um ponto de partida para o que pode ser trabalhado em todo o mundo neste dia. Para este ano a UNESCO propôs uma abordagem às múltiplas e complexas interações do ser humano com os contextos em que está inserido (social, cultural, geográfico e político), e de como a filosofia é um poderoso instrumento para decompor as nossas diferentes formas de organização social e compreender os inúmeros desafios com que são permanentemente confrontadas.
Não pude deixar de me lembrar da filósofa Mary Midgley, que compara o trabalho filosófico ao trabalho de canalização. Segundo ela, são trabalhos essenciais porque sustentam edifícios complexos que requerem sistemas no subsolo que são normalmente invisíveis e apenas notados quando causam sérias perturbações. São ambos fundamentais para o funcionamento de toda a complexidade que está à superfície mas, no caso específico do trabalho filosófico o reconhecimento não existe muitas das vezes porque, como ilustra a filósofa, quando os conceitos pelos quais nos regemos funcionam mal ou são insuficientes, não gotejam pelo teto nem inundam o chão da cozinha. Mas distorcem e obstruem o nosso raciocínio criando problemas estruturais que estragam, em última análise, as nossas vidas. E é esse o trabalho da Filosofia: identificar essas estruturas que são prejudiciais e melhorá-las, corrigi-las ou, quando necessário, deitá-las abaixo e substituí-las por outras.
Esta noção vai ao encontro, julgo eu, do objetivo da UNESCO ao instituir o Dia Mundial da Filosofia, que mantermos e alimentarmos a capacidade crítica e reflexiva que a filosofia nos proporciona é também garantir o trabalho constante nos fundamentos concetuais de princípios e valores que nos são essenciais, como são a justiça, a democracia, a liberdade, os direitos humanos a equidade ou o respeito pelas outras pessoas (e sabemos bem como a violência estraga a vida de tantas pessoas, a vida de tantas mulheres e meninas). Defender a filosofia é defender esta capacidade de mantermos o trabalho contínuo de melhorar e enrobustecer o nosso edifício coletivo.