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Perfeições impostas

Ninguém melhor do que a família e os educadores para nos sinalizarem os ruídos de extremo

Crianças e adolescentes “perfeitos” longe de ser um sossego para os educadores deve ser um sinal de alerta.

Cada vez surgem com mais frequência pedidos de ajuda de adolescentes e jovens adultos cansados de cumprir um papel que, apesar de não lhes ter sido especificamente exigido, foi-se tornando funcional em diferentes contextos. As razões subjacentes a esta atitude são multifatoriais, contudo o reforço de toda a envolvência familiar e social facilita a manutenção e progressivamente a rigidez do estilo. Crescem com um sofrimento que ninguém vê e que por desatenção é aplaudido e apresentado como exemplo.

Sendo a maioria destes jovens cognitivamente muito competentes capazes de cumprir objetivos ao mais alto nível, a sua perturbação emocional torna-se invisível nos contornos de excelência que tanto gratificam famílias e educadores.

Não querendo de todo reduzir o bom comportamento e os bons resultados escolares e académicos de alguns jovens a perturbações emocionais, a verdade é que os casos que vão surgindo exigem atenção e um foco de análise.

As famílias e a comunidade educativa devem repensar a facilidade com que premeiam o comportamento exemplar em contraste com a penalização constante dos mais irreverentes, críticos, inquietos, considerados ora como hiperativos ora como mal-educados. Nestes casos faz-se tudo para que se acalmem, sosseguem, questionem menos, não perturbem a paz desejada e atinjam resultados escolares que encham de orgulho quem tanto valoriza o sucesso.

É por isso fácil perceber que alguns, cada vez mais, jovens com resultados escolares entre os 90 e os 100% não se sintam satisfeitos, considerando que apenas atingiram o que deles era esperado. Esta insatisfação que transcende os objetivos escolares faz deles jovens ambiciosos, focados, disciplinados, organizados, sociáveis, conciliadores, atentos, corajosos, cuidadores diria: os filhos, alunos, amigos, “perfeitos”. Um olhar atento de quem os conhece desde crianças recorda que sempre foram assim, nunca foram verdadeiramente crianças, tornaram-se precocemente pequenos adultos, cuidadores.

Cuidam porque sentem que algo deve ser cuidado. A sua disponibilidade emocional e as suas competências cognitivas permitem-lhes entender as áreas frágeis dos sistemas onde crescem fazendo tudo para aliviar sofrimentos e tensões que pressentem como disfuncionais. Doença mental assumida ou camuflada, violência doméstica expressa ou mitigada, autoestima de um ou de ambos os progenitores pendurada no sucesso dos filhos, e tantas outras fragilidades do sistema familiar que tão facilmente se encostam à sensibilidade destes filhos, sugando progressivamente o tempo tão precioso de crescer em liberdade.

Esta “perfeição” imposta impossibilita que vivam as suas histórias no tempo certo, errando e corrigindo, desenvolvendo competências de vida fundamentais para a construção da vida adulta em todas as áreas de interação. Os momentos depressivos e os picos de ansiedade que se vão instalando resultam do esforço continuado de manter um padrão. Mesmo quando deixa de fazer sentido e a dor vai ficando mais forte é muito difícil alterar.

Quem anda por perto deve tentar quebrar o ciclo e não manter, para proveito próprio, os benefícios da continuidade. Isso é exploração de uma fragilidade que provoca sofrimento. Falo também da escola que muitas vezes se escuda no facto de não puder substituir os pais quando se trata dos “mal-educados” mas que aprecia, valoriza e reforça as excelências, sem perder tempo a pensar no que também isso pode significar.

Ninguém melhor do que a família e os educadores para nos sinalizarem os ruídos de extremo, seja qual for o quadrante. Nós estamos aqui para todos, sensíveis ao sofrimento e à dor incapacitante que limita o ato de crescer e viver o mais plenamente possível.