Vulgata social-democrata
1. Livro: por recomendação de Carlos Vaz Marques, no Governo Sombra, “Programa que eles estão legalmente impedidos de dizer”, cheguei a este “Inventário de Algumas Perdas”, de Judith Schalansky. Lido em três pernadas, de tão bom que é. São textos intensos que valem por si, sobre coisas que fomos perdendo ou nunca tivemos. Seja uma ilha no Pacífico comida por um maremoto, o unicórnio ou, mesmo, um país inteiro. No final, e ao olharmos para trás, para o que foi lido, ficamos com uma ideia precisa sobre o que a autora pensa que somos e para aonde vamos. Um grande livro nomeado para o International Booker Prize de 2021.
2. Todas as quintas-feiras, reúne o executivo da Câmara Municipal do Funchal. Foi o que aconteceu na passada semana onde se votaram pressupostos que têm a ver com impostos e taxas. Acabou-se, muito bem, com a derrama. Quanto ao resto, ou se mantém o que está, ou recuou-se depressa, dando o dito por não dito.
Um dos motivos que justificou o voto contra do Orçamento Municipal de 2021, por parte do PSD, foi o facto de pensarem que a devolução de IRS, por parte da vereação de Miguel Gouveia, podia ter ido mais longe. Já em 2019, pelo mesmo motivo, entre outros, chumbaram o Orçamento de 2020.
A Candidatura do 'Funchal Sempre à Frente', encabeçada por Pedro Calado, na sua Newsletter n.º 5, diz, claramente, que é sua intenção “devolver mais IRS aos munícipes”. Na primeira oportunidade que tem para o fazer, não cumprirá com isso, deixando a devolução de 2,5% como está. Quase me atrevo a adivinhar que esse valor subirá para 3%, no último ano de mandato, como se no horizonte estivesse a “possibilidade” de eleições municipais. É assim que se enganam os tolos.
Já Cristina Pedra, a vice-presidente da Câmara, continua a acenar com o IMI de 0,3%, como se este já não estivesse nesse valor, o mínimo possível.
E com isto se faz uma festa.
3. Vêm aí eleições. No final de Janeiro, seremos todos chamados a escolher quem nos representará no Parlamento Nacional. E como em todas as eleições, lá vem a costumeira conversa da utilidade do voto. Não digo que nunca alinhei nessa parábola. Estaria a mentir, se o dissesse. Curei-me desse mal, faz uns bons anos. Voto em consciência, porque essa é a utilidade maior que posso dar ao meu voto.
Ofereçam-vos essa capacidade e vão ver como, seja qual for o resultado, tão bem sabe. Votar em consciência é uma combinação de coragem, decência, tenacidade e um compromisso com o dever. E estas coisas não se devem vender a utilidades dúbias.
4. Tito Lucrecius Caro é um poeta romano de que pouco se sabe. As datas atribuídas a seu nascimento e morte estão baseadas numa pequena referência de uma crónica de São Jerónimo escrita no século IV d.C., situando o nascimento de Lucrécio em 94/93 a.C. e a sua morte no seu quadragésimo quarto aniversário. Conta o Santo que, após ser levado à loucura por uma poção de amor, Lucrecius trabalhou os seus poemas nos intervalos de lucidez, até que finalmente se suicidou.
A sua obra mais importante, “De Rerum Natura”, esteve perdida até ao século XV, quando foi descoberta na biblioteca de um mosteiro.
O escrito pelo poeta, está pejado de preceitos filosóficos. Segundo Lucrecius a vida é feita de pormenores que condicionam o futuro. Pequenos desvios que tiram as coisas da trajectória seguida, criando algo de novo. Tudo é aleatório. Tudo é espontâneo. Imagine-se o herético que isto não foi: o universo a funcionar sem o auxílio dos deuses, que o prazer pode ser virtude e a virtude um prazer, que o medo nos condiciona a decisão negativamente.
5. Tenho por princípio não “bater” em quem está no chão. Logo deixo o CDS-PP seguir a sua autofagia, que não pretendo interromper. Atenho-me ao PSD que, como sempre quando se opõem contrários, naquela espécie de albergue espanhol, fazem-no com se de uma luta de galos se tratasse. Cada um com a sua vulgata debaixo do braço onde pontificam o humanismo, a social-democracia, o liberalismo, e o sacrossanto personalismo. É deste último que quero falar.
Porque a confusão que por aí anda já é grande, vamos lá ver se nos entendemos. O Personalismo, tal qual foi criado por Emmanuel Mounier, não tem nada a ver com partidos, nem com ideologias. É um modo de ver o humanismo e foi abusivamente adoptado pela democracia-cristã para dar base a uma corrente ideológica circunstancial. Podemos mesmo dizer que é uma maneira de estar na vida, que estabelece uma profunda relação entre o que é espiritual e o que é material.
O Personalismo pede um recentramento da pessoa. Uma análise profunda que permita solidificar alma e corpo. Esse recentramento, aplicado à política, pode tornar-se perigoso, daí Mounier exigir uma profunda e activa distanciação do movimento personalista em relação aos partidos.
O cientista político Martin Wattenberg defende que, quando a opinião pública tende a ser neutra em relação aos partidos, é o candidato quem polariza o debate. A perda de referenciais ideológicos dos partidos ajudou a deslocar o eixo da discussão para as supostas qualidades dos candidatos e para factores de curto prazo. Competência, integridade, capacidade de decisão, carisma e atributos pessoais (aparência, idade, religião, saúde, etc.) preenchem o espaço deixado vago pela discussão política, sobretudo, em disputas pouco ideológicas.
É por isso que os tempos que vivemos, em termos políticos, são pouco mais do que ocos. A maioria das pessoas, nesta como noutras épocas, carece de liderança, pois não está habituada a decidir por si sobre muita coisa. É melhor nos queixarmos, do que exercermos o direito de decisão e escolha. Muitos de nós cultivamos um certo sebastianismo, que nos faz ficar à espera de uma figura que nos redimirá de todos os pecados e problemas. Era tão bom que assim fosse porque, no final, só restam homens e mulheres, com todos os seus defeitos e qualidades, que muito pouco têm dos heróis que imaginámos.
Como sociedade, a nossa obrigação é a de criarmos as nossas próprias soluções. É para isso que os partidos deveriam existir, como fóruns de discussão e de troca de ideias e não para o exercício de projectos pessoais. Os salvíficos, são criados por o debate ser inexistente. Por a discussão ser nula.
É tempo de todos, mas mesmo todos, pegarmos o touro pelos cornos e assumirmos as nossas responsabilidades sobre o destino a dar ao que é comum. Isso implica a participação política seja em partidos, seja em outro tipo de organizações, ou os problemas nem empurrados com a barriga serão.
É tempo de acabar com o discurso da conversa oca, mas bem urdida. O discurso do herói de boa pinta, não chega para podermos construir um futuro onde todos tenham lugar.
Por isso, cuidado com esses “personalismos” demasiado centrados na “persona” e muito pouco dados a pensar nos riscos que isso acarreta para a vida pública.
6. A minha curiosidade, a admiração que nutro por todos os que lutam pela liberdade, seja lá onde for e por que meios, levaram-me a conhecer, virtualmente, um poeta afegão com quem fui trocando alguns e-mails.
Omar Salim está ligado à Frente de Resistência Nacional do Afeganistão que, a partir do Vale de Panjshir, resiste à ignorância Talibã. Termino deixando-vos um belíssimo poema escrito em vésperas de uma tentativa de invasão do vale, pela coligação Talibã/Paquistanesa:
“Quando a escuridão chega e não há luz,
Quando as corujas choram a canção da noite,
Quando as tempestades se levantam das profundezas dos mares,
Quando um raio atinge a mais alta das árvores.
O nosso sangue pinta a face da areia.
Vamos ficar, nós vamos ficar!”
Omar Salim