Crónicas

O melhor da Festa é preparar a Festa

Uma Festa que nos devolva a tradição, aquele empenho que faz esquecer os azares, as dores e tudo o que correu mal e até a pandemia

A música ainda não começou a tocar no centro comercial, mas não deve faltar muito até toda a cidade se encher de melodias natalícias. Não sei se será já uma Festa como dantes, a última foi em 2019. Tivemos direito a tudo: encontros de amigos e pessoas que não víamos há anos na placa central, noite do mercado com muita poncha e sandes de carne vinha e alhos e uma onda de calor inesperada nos últimos dias do ano.

E depois veio 2020, o resto é a história que vivemos nestes quase dois anos. Primeiro rimos do vírus, que não havia de cá chegar, depois afixaram informações nas portas e nos elevadores. O meu prédio tem vários desses panfletos a explicar os riscos para as pessoas oriundas das zonas afectadas, da China ou de Itália. Parece que foi há anos que puseram aquilo ali ou que, logo a seguir, nos mandaram ficar em casa, enquanto nos entretínhamos a publicar vídeos engraçados do confinamento.

O tempo do estamos juntos e do vai ficar tudo bem, das ruas vazias e as lojas fechadas e do apoio a quem estava na linha da frente nos hospitais e a quem mantinha a vida da comunidade a funcionar nos mínimos. Ainda me lembro de como era estranho atravessar o centro comercial, de ver as montras como estavam naquele dia em que fechou tudo. E depois a fila do supermercado, a mania do papel higiénico, a mania de fazer pão e, já mais para o fim, a imensa vontade de voltar a beber um café numa esplanada.

Veio o desconfinamento a conta gotas, a moda das máscaras de pano e o Verão antes de nos cair em cima a segunda ou terceira vaga. Fez-se um Natal mais ou menos, uma passagem de ano esquisita e entramos no recolher obrigatório. E, de caminho, a doença tocou-nos com um dos seus múltiplos braços. Ou mexeu com o emprego e o negócio ou infectou ou infectou alguém próximo. Eu passei 10 dias em isolamento, já em Abril, a apanhar ar apenas na varanda, apesar de dois testes negativos. Era o protocolo dos contactos diretos.

Os dias quentes trouxeram a vacinação, as filas no Tecnopólo e as conversas dos efeitos secundários. O herói almirante e os negacionistas que renderam até Setembro e saíram de cena quando se chumbou o orçamento e se desfez definitivamente o acordo tácito de salvação nacional. A política voltou ao que era, resta saber se esta será uma Festa das antigas, daquelas que começam no princípio de Dezembro, metem jantares de amigos, encontros de família, compras e limpezas, missas do parto e romarias no adro das igrejas e um almoço farto no dia 25.

Uma Festa que nos devolva a tradição, aquele empenho que faz esquecer os azares, as dores e tudo o que correu mal e até a pandemia. Todos os anos, quando parecia que a nossa casa do Laranjal iria naufragar e falhar o Natal, quando a minha mãe perdia a paciência, quando nos culpava até quando a Casa da Luz cortava a electricidade no dia 24, até nesses momentos nascia-lhe um sorriso na cara. Tudo aquilo que eu via à minha frente - a loiça dos armários ainda na pia da cozinha, a canja ao lume, o Menino Jesus ainda dentro da caixa de sapatos – valia o esforço, o nervoso e o mau humor, um dia eu ia perceber que “o melhor da Festa é preparar a Festa”.