Uma verdade inconveniente
A Operação Miríade promete uma desilusão moral. Mas a sua existência é uma vitória do primado da lei, cuja aplicação aos militares é historicamente nebulosa ou flagrantemente indecente
Despojos de guerra
A Operação Miríade, em que militares portugueses se viram emaranhados numa rede de tráfico internacional de ouro, diamantes e droga a partir da República Central Africana, toca em feridas interessantes do nosso tempo.
Para aperitivo, começava-se por reconhecer que estes militares são os mesmos que se enfiaram, com risco e abnegação, num dos conflitos mais ferozes e impiedosos à face da Terra. São os que apareceram na televisão a oferecer bicicletas e bolas, a patrulhar escolas, e a condecorar Portugal entre a sociedade das Nações. Não são outros. Se vamos mergulhar nas contradições da alma, convenhamos que traficar um par de diamantes num voo não vigiado da ONU, para dessa penada resolver uma vida rasada por balas e estilhaços não é a mais incompreensível das tentações.
Feita essa justiça, nem tudo pode ser relativizado. A natureza habitual e organizada do ringue, bem como a presença de estupefacientes, sugerem um vício mais profundo. Esse vício é porém a expressão perversa de uma certa maturidade democrática.
Até há bem pouco tempo, os crimes agora denunciados seriam abafados pela justiça militar, e arquivados sob o costume infame e generosamente interpretado dos “despojos de guerra”: o direito do vencedor a apropriar-se de bens inimigos, que assim são – legalmente – confiscados ou capturados no rescaldo do combate.
A Operação Miríade promete uma desilusão moral. Mas a sua existência é uma vitória do primado da lei, cuja aplicação aos militares é historicamente nebulosa ou flagrantemente indecente.
Acessoriamente, este episódio demonstra ainda que as criptomoedas não são apenas o sangue dos unicórnios do comércio moderno, ou a coqueluche da vanguarda tecnológica da Web Summit. São também o numerário do crime organizado e do branqueamento de capitais, para desespero do rastreio do dinheiro e do corpo de investigação. Com procura deste quilate, pouco admira que as cotações subam e rebentem como foguetes de cana.
Sucede que o mundo começa, muito justamente, a perguntar-se sobre os impactos éticos e ambientais do consumo. As pedras preciosas, as moedas digitais, e até a droga, são ilhas de complacência numa ordem vigilante e inclemente, onde o chocolate, a roupa, a papelaria, a fruta, a carne, o peixe e os vegetais se trocam entre juras de “cruelty free”, “sustainably sourced”, e “carbon neutral” em embalagens recicladas, reutilizadas ou principescamente taxadas. Tudo para aplauso e regalo dos adventistas da revolução digital, fanáticos de uma ideia universal e absoluta de justiça que só vigora com dinheiro. Muito dinheiro.
A Justiça, ou a pureza moral, tornou-se então num bem de luxo, e de certo modo um sinal de estatuto.
Talvez um dia se siga a ideia até ao fim. E nos perguntemos, a propósito de luxo, o que uma pedra preciosa acrescenta a uma vida bem resolvida, ou qual o sentido de empenhar uma fortuna no sangue que escorre entre as sarjetas da Antuérpia. Ou qual preço da troca de activos sem substracto, em nome de uma especulação que tão poucos compreendem para que tantos aproveitem. Ou ainda se certas drogas, sendo o que são, não devem ser apreendidas ao crime organizado, e controladas no seu preço, qualidade e distribuição, secando-o do poder e influência financeira que tão inequivocamente possui.
Por enquanto, continuamos humanos. Cegos aos despojos da nossa própria guerra.
E talvez só se consiga viver assim.
Uma verdade inconveniente
Os Governos do Mundo reúnem-se em Glasgow para acordar numa estratégia climática global. A tarefa é evidentemente hercúlea e urgente. Procura-se atingir a neutralidade carbónica até 2050. Dá-se de barato a ausência da China e da Rússia, e as dissimulações da Índia, da Arábia Saudita, da Austrália e do Japão. Desalentadoras, mas nem por isso surpreendentes.
Foquemo-nos na Europa. Mais especificamente, Portugal. Que se juntou-se à Alemanha, Luxemburgo, Áustria e Dinamarca para instar a União Europeia a abandonar os apoios verdes à energia nuclear.
Não se desconhecem os riscos da tecnologia, nem os testemunhos de Chernobyl e Fukushima. E não se ignora que os resíduos radioactivos são um dilema.
Sucede que a transição energética não se faz entre as intermitências do sol e do vento, que de resto não se manifestam com o mesmo vigor na República Checa ou na Eslováquia. E queimar gás e combustíveis fósseis não só é mais poluente, como promove dependências pouco recomendáveis dos países ausentes e dissimulados.
O nuclear pode não ser renovável, mas é produtivo, e baixo em emissões de carbono. Pode não ser bonito, mas é verde. A decisão de o ostracizar é precipitada, e potencialmente perigosa. Para o clima, como até Bill Gates já demonstrou e advertiu, mas também para as nossas sociedades. As democracias têm muito de economia. Só se aguentam com um módico de prosperidade material, que depende de energia abundante e acessível. As renováveis não a garantem, e o que resta é opção difícil.
Na narrativa das alterações climáticas, há mais do que uma verdade inconveniente.