Crónicas

Milinha Margarida Theresa

Este relato começa a “meio”, mas talvez só para aqueles que não têm acompanhado os trânsitos migratórios da família Fernandes e sua família alargada, nomeadamente, da Ribeira Brava e da Fajã dos Padres para Niterói.

Em 1960, quando viajam da Madeira no Vera Cruz, Eugénia e a família levarão de “volta” para o Brasil, duas cópias de um mesmo retrato de Margarida Theresa, conhecida por Milinha, que as tinha anteriormente destinado de Niterói à Fajã dos Padres (entre 1956 e 1960).

No verso de uma das cópias do retrato, podemos ler: “este é para a mãe receba minha vizita já que não posso ir pessoalmente comer umas uvinhas e uns figuinhos [peço] a Deus (?) mãe eu não mande para ninguém que eu não fiquei bem receba um beijinho e um para o pai e muitas saudades”.

A imagem é atravessada por uma certa tensão. Margarida Theresa parece aí apelar a que a mãe receba através daquela imagem a sua ‘visita’; mas por outro não parece validar essa mesma imagem como uma imagem válida de si: pedindo para não a mostrarem a ninguém visto não ter ‘ficado bem’.

A outra cópia do mesmo retrato é também enviada de Niterói, mas por um outro membro da família (provavelmente pelo seu irmão João). Envia-a especificamente a Eugénia, irmã de ambos, (que na época estava ainda na Madeira). A cópia foi aparentemente enviada sem que Margarida Theresa o soubesse, mas serve, de acordo com o emissor, para que Eugénia matasse saudades: “Crida / Eugénia / com o coração a / transbordar de saudades a / Milhinha te oferece esta / fetugrafia para que mates saudades / a Milinha não ficou bem mas / eu não quero que vosseis / amostre eu vou tirar / com o José ela / não queria que eu mandasse / que não / tá bom”.

O reconhecimento por Margarida Theresa do seu retrato enquanto meio de visita apesar do seu manifesto desagrado perante essa ‘formulação’ de rosto, parece-me ser um sintoma de um dilema talvez particularmente específico ao acto fotográfico: como “agir do interior” desse mesmo acto sobre “o aspeto” individual? No caso deste retrato, esta ação falha: ou seja o rosto viaja, desvia-se de uma expetativa; mas apesar do estranhamento, do manifesto desagrado perante essa forma de “individuação”, é precisamente por ser ainda assim uma individuação, pela força da autenticação fotográfica, que a imagem é contudo legível e, portanto, válida.

Eugénia diz relativamente a essa e outras fotografias afetas a correspondências postais, que os irmãos e cunhados mandavam fotos para a Madeira para ‘atualizar a família”. Desde que Eugénia Fernandes chega a Niterói, irá também por sua vez manter uma correspondência postal regular não só com os familiares na Madeira, mas também com os outros parentes radicados nos Estados Unidos da América e na África do Sul.

E será precisamente sobre uma imagem recebida da prima Ana que estava nos Estados Unidos que iremos falar na próxima semana.

Nota: no texto da passada semana mencionei de forma errada que o nome do menino na imagem reproduzido é Manuel, quando é, tal como também referido, José Manuel.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.