Atenção aos gregos...
Os gregos sabiam muito da natureza humana. Inventaram, por assim dizer, a democracia como forma de governo da pólis, mas sabiam que o germe da destruição e da catástrofe, em consequência de escolhas humanas, jamais poderia ser erradicado. Da imensa riqueza simbólica da sua mitologia — o mito será tudo menos “inocente” — surgem múltiplas figuras e conceitos a atestar esse conhecimento do homem, expressando na gramática própria do mito uma explicação “etiológica” da realidade: colocar numa origem divina primordial a explicação e o sentido de tudo aquilo (o bom e o mau: o destino) por que passam os homens...
Curiosamente, ou talvez não, voltaram ao nosso convívio de modernos leitores de jornais palavras como “húbris” e “Pandora”, cuja origem e significado apontam para a velha Grécia, mas sem que tenham perdido, milénios depois, a sua estranha relevância... Brevíssima explicação: a “húbris” pode ser entendida como um “excesso”, ou “doença do poder”, quando associada a comportamentos de soberba e arrogância, ou seja, a presunção de força e ilusão narcísica que leva à catástrofe... Quanto a Pandora, foi enviada por Zeus em presente numa caixa (a “boceta de Pandora”) que, uma vez aberta, se tornou a origem de todos os males... Atualíssimo, como se percebe.
O conceito grego de “húbris” condensa o que se terá passado a 26 de setembro (muito antes, na verdade) para se chegar à “enorme surpresa” destas autárquicas, sobretudo em Lisboa, mas também no Funchal (claro que o “espanto” é sempre da esquerda, quando não é ela a ganhar eleições). Ressalvadas as enormes diferenças a invocar para os números numa capital e noutra, seria bom perceber que os eleitores estão cada vez mais desmotivados da política, mas não amorfos nem alheados do essencial, e lêm o “ar do tempo” tendo a vida concreta do seu quotidiano e do acontecer da cidade como referência decisiva na hora de votar. Embora aquela franja de surpreendidos possa sempre trazer explicações inanes, que passam por “cabazes” e “frangos assados”, a verdade é que o voto consuma a razão democrática de quem espera mudanças, outros projetos, e a realização de expetativas goradas ou adiadas.
O que define as autárquicas? Políticas de proximidade, atenção ao contexto, diálogo. É que os eleitores captam a diferença entre a propaganda — a golpes de bazuca, ou no matraquear do politicamente correto — e o que de facto importa para o seu dia a dia na cidade, em termos de soluções práticas para problemas concretos, da eficácia dos serviços ao trânsito sem caos — uma cidade habitável. Medidas justas ou necessárias podem induzir à revolta, se irrealistas e a destempo. Exemplos? Cá como lá, imensas imprecações sobre as ciclovias: as planuras de Amsterdão não se improvisam! Racionalidade, atenção, proximidade — tudo o que faz falta quando a “húbris” toma já o freio nos dentes, ou quando, acalentada no espelhismo mediático das elites urbanas, deixa de perceber o que realmente se passa: que a cidade é para (todos) os cidadãos! Uma cidade real com gente dentro, harmonia e civilidade, tem de ouvir a voz das margens, e não pode admitir que hordas desenfreadas de “bárbaros da noite” acabem a expulsar (metaforicamente?) os que têm direito à sua habitação e ao seu sossego...
A “húbris”, permanente tentação de todo o poder (e especialmente do político): só a atenção ao real e a autocrítica podem afugentar os males de uma inesperada “caixa de Pandora”.