Leituras complementares de eventos históricos
Os eventos político-religiosos de cariz revolucionário são dos que tornam possíveis mais leituras alternativas e complementares. Estas não anulam as mais ideológicas, mas oferecem novas visões da história. O golpe revolucionário de 5 de outubro de 1910 é um desses eventos polifacetados. A separação entre o Estado e a Igreja e os seus aspetos positivos e negativos vão continuar a oferecer leituras históricas repetidas e divergentes doutras que recompõem o tempo histórico.
Nas leituras deste golpe, precedido de regicídio, entram arremedos repetidos, radicais, da Revolução Francesa de 1789; como sua segunda edição revista, talvez mais jacobina da extinção das Ordens e congregações religiosas, com incorporação dos seus bens na Fazenda Nacional e venda em hasta pública como já em 1934. Agora (1910) não são conventos e bens de religiosos e religiosas por não terem existência civil, mas eram apenas bens de cidadãos que eram também membros da Igreja católica.
Se já antes de 1834 tinha havido na Europa, com exceção da Rússia da Czarina Catarina, eventos da extinção dos Jesuítas, em 1910 as leituras republicanas da expulsão de religiosos Jesuítas ofereceram leituras do “mito dos Jesuítas” ridículas, se aspetos dele não tivessem sido dolorosos. José Eduardo Franco descreve alguns de medições biológicas de Jesuítas, à entrada de Caxias, para provar a teoria do Dr. Miguel Bombarda de que os Jesuítas eram degenerados como os doentes do Manicómio de Rilhafoles.
Outros episódios do 5 de outubro, não menos caricatos, sucederam nas Casas de Saúde do Telhal e da Idanha (Sintra) protagonizados pelo próprio corifeu da revolução, Afonso Costa. No dia 15 de outubro de 1910 foi ali à de religiosos e religiosas e de bens, para expulsar a uns e leiloar outros, mas encontrou também doentes mentais pobres necessitados de assistência assegurada Uma vez que o Estado não dispunha nem de dinheiro nem de pessoas com perfil para isso, lá ficaram sem extinção os Irmãos e as Irmãs, toleradas na sua missão, sem noviciados e hábitos. Apenas autorizados a continuar a pedir, de casa em casa, pelo país para assegurarem a subsistência e cuidados aos pobres doentes.
No dia 2 de outubro de 2021, na igreja de Santo António do Funchal, em cerimónia e sessão de tribunal canónico foi recordado outro episódio relativo ao 5 de outubro. No dia 14 de outubro já os carros fechados paravam à porta do Convento das Mercês do Funchal para levar as quinze recolhidas (Irmãs Clarissas) para o Palácio de S. Lourenço onde foram instaladas até os familiares as acolherem. Por todo o país foram esvaziadas outras casas de religiosos e religiosas e os conventos ocupados para serem postos em hasta pública alguns até à demolição como aconteceu ao das Mercês em 1911. Esta sessão do tribunal, constituído pela Diocese, que durou cerca de duas horas após a Missa, destinou-se ao encerramento do processo diocesano da beatificação da Madre Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), a Superiora da Comunidade de Irmãs Clarissas do convento das Mercês. Aberto há 15 anos por D. Teodoro de Faria atingiu 5.300 páginas de árduo trabalho de investigação histórica e teológica para documentar a vida de virtudes cristãs heróicas que terminaram em fama de santidade. Este processo veio também lembrar que há leituras de tempo histórico com valores cristãos à espera de historiadores.
Uma outra leitura é a da morte da Madre Virgínia em 17.01.1929. Pela proximidade entre a Casa desta Irmã Clarissa e os Irmãos de S. João de Deus presentes no Trapiche a assistir doentes mentais desde 7 de fevereiro de 1922, segundo alguma tradição, teriam permitido idas à missa na capelinha de S. João Baptista e Santa Ana da Quinta do Trapiche. Nos últimos anos, a Irmã já não podia deslocar-se à distante Igreja de Santo António. Dos oito Irmãos da comunidade alguns levaram o caixão da Irmã Virgínia à Igreja de Santo António e ao cemitério.
Mas há mais leituras. Em 1917, sete anos depois de 5 de outubro de 1910, os Irmãos do Telhal, não extintos pela República, tiveram a surpresa do Ministro da Guerra lhes pedir para assistirem os militares doentes e gaseados, regressados da frente da I Grande Guerra. Este ano de 1917 associa-se, ainda, a outro evento, o de Fátima, que se tornou até hoje o fenómeno político religioso cristão católico de maior dimensão nacional e mundial, maior que o evento de 5 de outubro de 1910, como que a lembrar que neste evento sectário, tinha sido esquecida e desprezada a visão temporal e transcendental mais valiosa da humanidade que Nossa Senhora veio lembrar a três crianças, a Portugal e ao mundo.
Aires Gameiro