Crónicas

Catrapum…

1. Disco: sou da geração em que não era de bom-tom gostar de fado. Foi um gosto tardio levado pela mão de vozes que não se podem ignorar. Saiu agora “Horas Vazias”, de Camané, uma mistura de fados clássicos com outros originais, de nomes improváveis como Pedro Abrunhosa. Jorge Palma, Sérgio Godinho, Vitorino, Amélia Muge e Carminho, ajudam a compor o álbum. Destaco o dueto do cantor com o saxofone de Ricardo Toscano. Um grande disco.

2. Livro: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão. Carlos Quevedo é o autor e realizador de “E Deus Criou o Mundo”, um programa semanal da Antena 1, onde se promove o diálogo inter-religioso. Desse programa, e das conversas que lá acontecem, resultou um livro, com o mesmo nome, que se lê muito bem, permitindo melhores entendimentos sobre as três grandes religiões monoteístas. O que as une e o que as separa.

3. Começo por dizer que Marcelo ganhava muito mais se estivesse calado, como lhe competia, do que ao criar uma relação de causa/efeito, entre a não aprovação do orçamento e a dissolução do parlamento, e consequentes eleições.

Mais do que o chumbo do Orçamento de Estado de 2022, o que aconteceu na semana passada é, tão só, uma espécie de clímax da falência do sistema. Os partidos tradicionais, porque o são, já não têm nada para dar, e o que fizeram nesta legislatura foi escancarar a porta ao populismo. Ao acobertar o BE e o PCP, António Costa não acabou com o conceito de arco da governação, só o alargou.

A culpa é sempre dos outros. Frases como “quando os senhores estiveram no Governo”, ou “quando fomos Governo”, ouvem-se à exaustão nos, quase sempre, pobres debates com que somos brindados. Consensualize-se que a culpa é do D. Afonso Henriques “porque bateu na mãe” e atribuam-se-lhe as culpas de tudo.

O mundo mudou e os partidos do arco da governação, agora alargado, PS, PSD, CDS, BE, PCP, cheiram a mofo, de tanto andarem agarrados a dogmas do passado, que nem na altura funcionaram.

As caras são sempre as mesmas. E mesmo as novas já chegam velhas e com manchas de bolor. Discursos gastos, proferidos para o umbigo, que remetem para um passado que não pode ser alterado e pouco querem saber do futuro, de qual será o legado que deixaremos para os nossos filhos.

O SNS a cair aos bocados; a educação que pouco ensina e promove cartilhas ideológicas; a justiça disfuncional; a subsidiodependência como modo de assegurar votos; a constante mão estendida nos areópagos da Europa, a mendigar ajudas que chegam sempre aos mesmos; uma produtividade que envergonha; uma carga fiscal que oprime; uma normal, porque aceite por todos, distância entre o prometido e o realizado; é isto o que temos, é nisto que vivemos.

Se formos para eleições o resultado é previsível. Como sempre os eleitores vão, como tão bem escreveu Lampedusa, mudar qualquer coisa para que tudo fique na mesma.

Costa já disse ao que vai: manter o que tem, tentar dar uma talhada no PC e outra no Bloco, argumentando ser um desperdício votar à sua esquerda, pois — como ficou demonstrado — não há acordo possível com eles. Depois é esperar que o PAN eleja uns dois deputados — Inês Sousa Real já se pôs em bicos dos pés — e pode estar à beira de da maioria absoluta.

É claro que os comunistas e os bloquistas não querem eleições. Disseram isso mesmo no dia seguinte ao terem votado contra o OE. Que Costa faça outro, disseram. Para poderem votar de novo contra, se não for do seu agrado.

As lutas fratricidas no PSD e no CDS vão deixar marcas profundas. Por maiores que sejam as rezas de amor e unidade no pós-Congresso, uns andarão a comer os outros, sempre que o poderem fazer. As posições Rio/Rangel e Chicão/Melo estão por demais extremadas.

A Iniciativa Liberal (que também tem a sua Convenção em Dezembro) e o Chega (que tem o seu plebiscito esta semana) são os que mais têm a ganhar com tudo isto.

Por cá Paulo Cafôfo já deu a entender ao que vai, pondo-se a jeito para encabeçar a lista do PS. O CDS e o PSD têm uma boa oportunidade de verificar o que vale cada um. Creio que a liderança dos socialistas laranja não deixará passar a oportunidade de o fazer. O CDS Madeira tem todas as razões para estar preocupado, pois, cá como lá, estas eleições podem provar a sua inutilidade.

Depois das crises económicas de 2008, de 2011 e a de 2020, oferecem-nos agora uma crise política. Melhor, ofertam-nos com várias crises partidárias.

Espero que ainda sobre um pouco de bom senso para que as coisas só comecem lá para Janeiro. Para podermos passar a Festa sem a mal-criação em que se transformam as campanhas eleitorais.

Tenham tino.

4. São tempos estranhos, confusos, enigmáticos, estes que os amantes da liberdade vivem. A pandemia, as falsas notícias, as redes sociais que socializam o ódio e a intolerância, a emergência dos populismos facilitistas, a inanição e a incapacidade de decidir individualmente com responsabilidade, perspectivam um período de mudanças sociais e económicas rápidas e talvez sem precedentes. Daí, ser mais que tempo de começarmos a reflectir sobre novas formas de olhar para as coisas, que fujam aos padrões estabelecidos, sobre as questões públicas da governação, pois o que temos começa a provar que não nos tem servido bem.

Recuperar o equilíbrio. Isso só acontecerá se abrirmos os olhos e a cabeça, para o que parece simultaneamente perturbador e encorajador. Urge parar e pensar, reflectir sobre o que somos e para onde queremos ir.

Pensar mais sobre quem somos, sobre o modo como queremos viver, pois conhecermo-nos é o prefácio indispensável para concluirmos o que realizar para sustentar o futuro da nossa liberdade pessoal e política.

Chegámos a um ponto onde o indivíduo deixou de o ser e tornou-se num simplório que não se chateia que tudo lhe levem, desde que por ele decidam.

Nós, animais sociais, somos “programados” por instinto para encontrar significado no servir causas maiores do que aquilo que somos, e conciliar liberdade com individualismo só é possível num contexto relacional onde se fale mais sobre deveres, do que sobre direitos.

O que acontece é que o indivíduo, o homem, deixou de ser o centro de tudo. Foi substituído pelo grupo. Assim, nada é mais fácil para que uns tantos se sirvam deste “grupismo” em proveito próprio.

Porque nos transformámos em pacóvios, descurámos a nossa cidadania. Deixámos de participar, de nos envolver, de nos interessar. Deixámos andar.

Sem darmos por isso, a classe média empobrece, a família, entre os mais desfavorecidos, desconstrói-se, a distância económica que separa a elite dos outros é crescente, o sermos cada vez menos produtivos e a incapacidade de assumirmos as nossas responsabilidades, levam a que o emprego, a mobilidade social e a igualdade de oportunidades pareçam cada vez mais inacessíveis.

O sucesso apoia-se em boas escolas, famílias estruturadas, capacidade de escolha, participação cidadã, responsabilidade individual e capacitação de todos.

E não deixar ninguém para trás.

5. “O Orçamento Nacional deve ser equilibrado. As Dívidas Públicas devem ser reduzidas, a arrogância das autoridades deve ser moderada e controlada. Os pagamentos a governos estrangeiros devem ser reduzidos, se a Nação não quiser ir à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver por conta pública.” — Cícero orador e político romano, 106 – 43 a.C.