Crónicas

Castanhas

Acho que se fechar os olhos sou capaz de refazer os percursos. Um grande castanheiro na porta por cima da rocha, laranjeiras e uma tangerineira, a loja do vinho, a cozinha na outra ponta e o poço de lavar com uma torneira trabalhada. Os quartos estavam já vazios, mas as minhas melhores memórias são desse tempo. Tinha eu sete anos e a casa dos meus bisavós fazia as vezes de castelo encantado da infância. Lembro-me que fiquei triste quando a minha mãe e as minhas tias decidiram vender.

A decisão mais acertada e inteligente, repetiam depois dos últimos inquilinos terem levantado ferro. Era uma família com muitos filhos e filhas, de idades variadas, com quem brincámos algumas vezes, mas não se demoraram muito e casa voltou a ficar desocupada. A minha mãe e as minhas tias tinham crescido naquela casa, por entre os poios e o carinho da avó Augusta, do meu bisavô dos 100 anos e do tio cambadinho, mas estavámos nos anos 70 e faltava dinheiro a todos. O meu avô morrera e elas não sabiam o que fazer com as memórias antigas.

Lembro-me das discussões nas partilhas. A minha mãe ficou com a máquina de costura e uma tesoura, a minha tia Alice pendurou o quadro do bisavô centenário no quarto da televisão e as minhas tias solteiras arrumaram as revistas de África – portuguesa e colonial – que o tio solteiro assinava. A casa ficou à venda, mas o comprador levou tempo a aparecer. E, enquanto não chegava, o meu irmão e eu corríamos os cantos da propriedade.

Por alturas do Pão por Deus a minha prima Ana também ia ajudar a apanhar castanhas e ouriços. As minhas tias e a minha mãe estendiam depois um pano no chão e deixavam as castanhas ao sol, era melhor de descascar. Os ouriços ficavam para enfeitar a escadinha do Menino Jesus da Festa. E, em Dezembro, quando a Festa começava a mexer, íamos apanhar as tangerinas, as únicas que havia em todos os terrenos da família. O castanheiro também era único e, por isso, quando apareceu comprador, um rapaz do Curral acabado de chegar de França, foram-se as castanhas e as tangerinas, no mesmo rol da casa, do meu castelo encantado da infância.

Por uns tempos, em troca de ver a telenovela a cores na nossa casa, ainda me deixaram passear pela fazenda, com direito a apanhar tangerinas e castanhas, mas não demorou muito a quebrar esses laços iniciais. O rapaz do Curral veio de vez da França, arranjou noiva e casou, com festa segundo os costumes da freguesia de onde vinha. Houve cortejo dos noivos, caminho feito a pé entre a igreja e a casa. Já não me lembro se fomos convidados ou não, mas é capaz. A minha mãe deve ter despachado com um serviço de chavenas no Baganho, era o que fazia em todos os casamentos.

Eu teria gostado da festa, de ir às festas, mas a minha mãe fazia sempre contas de cabeça, a ver se havia de gastar em roupas e sapatos. Talvez por isso o juro do dinheiro da venda da casa dos meus bisavós deu para acudir a aflições e necessidades, fosse um quarto novo em casa ou as minhas despesas em Lisboa, nos anos da faculdade. O que sobrou levantei-o em 2020 da conta a prazo do meu pai na Caixa Geral de Depósitos.