Uma lufada de mar fresco
No Marítimo respira-se como na Madeira se respirou depois daquele primeiro golpe de asa de Miguel Albuquerque. Foi uma lufada de mar fresco.
Não me meti nas eleições do Marítimo. Nem escrevendo. Justifica-se explicar. Primeiro, porque sou sobrinho de Rui Fontes. O apoio suscitaria reserva, enfado, ou até desconfiança. Pior: era inconsistente com as práticas que se queriam derrotar. Segundo, porque cedo soube que não me poderia deslocar à Madeira para votar. Não seria coerente meter a boca onde não meto o voto. Terceiro, porque tenho uma aversão íntima ao pastoreio em voga nas redes sociais, onde figuras de todas as andanças anunciam o seu voto, na esperança de chegarem a ser influentes por se comportarem como um “influenciador”. A minha opinião era parcial, e por isso pouco credível. Claro que tive outros pensamentos. Mas tratavam-se, no fim de contas, de orgulho e insolência.
Há lacunas e defeitos nesta forma de estar. Mas há também virtudes. A principal é a de libertar para escrever o que me apetece. E apetece escrever que a última sexta foi um grande dia para o Marítimo e, de certa forma, para a Madeira. Não por aquilo que foi, mas por aquilo que representa.
O consulado de Carlos Pereira não se fez só de decadência e fracasso. Fez-se também de bons resultados, plantéis competentes, investimento no clube e maritimismo empenhado e de boa-fé. Virtudes que não se devem gratuitamente escorraçar.
Mas 24 anos não é uma presidência. É um papado. E o poder não corrompe apenas na sua latitude, mas também na sua duração. Não é questão de intenções, mas de qualidade das instituições. E a instituição do Marítimo degenerou porque assentou num modelo arcaico e pernicioso.
Esse modelo não é exclusivo do futebol, que nele desempenha um papel meramente instrumental. É parte de uma cultura mais profunda, que corrói e contamina toda a sociedade.
Políticos, empresários e funcionários públicos de toda a ordem e categoria assistem, por convite, a jogos da Liga. Outros tantos declaram um simpático fanatismo pelo seu clube, e sofrem ou exultam com o seu desempenho, que comentam desenfreados em programas mexicanizados onde se fala de tudo menos de desporto. Em tempo de eleições, os partidos aceitam e procuram o alto patrocínio de dirigentes comprometidos e comprometedores. Notoriedades da política passeiam indiferentemente pelo Governo, pelas Câmaras, pela Assembleia e pelos clubes. Em 2016, caíram dois Secretários de Estado por aceitarem bilhetes para a bola da Galp. E em 2021, em plena proibição de circulação entre concelhos, o Governo e os deputados da Nação dirigiram-se a Sevilha para comparecer à comunhão, apoiando em massa e privilegiadamente a selecção.
Neste carrossel, todos escrevem sobre futebol, todos comentam futebol, e todos protestam contra a promiscuidade entre a política, os negócios e o futebol, que descaradamente promovem e de que fatalmente beneficiam.
Este “sistema” é recebido com um encolher de ombros, e é no país tratado como a natureza das coisas. É a regra, e não a excepção. Só que até as regras têm um tempo.
E Carlos Pereira subestimou o seu. Viu-se nas grandes opções da sua gestão, mas sobretudo nos pormenores da campanha.
Quando afirmou que o Presidente do Marítimo tinha de ter credibilidade financeira pessoal (a célebre “caneta”). Quando sublinhou que nem ele, nem a sua equipa, receberiam ordenado do clube. Quando insinou que Rui Fontes não ia mandar no clube, e antes se propunha a ser uma Rainha de Inglaterra.
Isto quando a sanidade das instituições pressupõe precisamente a separação entre o património do Presidente e o orçamento da instituição presidida. Quando recusar ordenado para desempenhar uma profissão, além de não comover ninguém, é errado quando não é suspeito. E quando a separação entre as funções representativas, financeiras e executivas – entre o Presidente, as finanças e o futebol – são a marca de empresas e sociedades equilibradas, com uma compacta distribuição de freios, contrapesos e responsabilidades. Não por acaso, a Inglaterra é uma superpotência, enquanto a concentração de poderes e a sacralização do líder são atributos das Repúblicas das Bananas, incluindo uma bem conhecida dos madeirenses.
Um Estádio é sempre um símbolo. O do Marítimo remodelado, mas com o relvado interdito e pelado, representava um clube onde o desporto se colocara ao serviço do património. Quando é o desporto, e não as cadeiras, que movem as multidões. O travo nostálgico da candidatura de Rui Fontes não foi um acaso. Com um bom relvado e uma boa equipa, os adeptos até assistem de pé.
Como em todas as paixões, a vitória é precária. O Presidente de um clube está sempre a três derrotas de uma crise. Não se sabe o que espera ao Marítimo nos próximos tempos, assim como não se sabe quão intricadas são as redes que o foram salvando da descida.
Mas a semana passada foi de esperança. Não propriamente num clube, mas numa sociedade que desassombrada e democraticamente rejeitou um poder instalado e antigo, que perdera o horizonte e a ambição. As eleições correram participada e elevadamente, com mérito de ambas as listas, que nomearam uma comissão acima da dúvida.
Há uma pequena euforia nos dias seguintes aos dias como este. É a alegria de ver ratificada a intuição de que o poder é uma ilusão. E logo que o medo do poder, a ânsia de poder, o perigo da mudança, a angústia do vazio e o teatro da hierarquia são histórias que contamos a nós próprios. O poder de contar outra história é a essência da liberdade.
Mas foi preciso coragem. E não devia ser preciso coragem para fazer o que é natural em democracia, nas empresas e no associativismo.
É por isso que uma sociedade não se liberta só pelos actos. Liberta-se sobretudo pelos processos e pelas formas de governo. São eles que distinguem a democracia material, efectiva, de uma democracia caciqueira e meramente eleitoral onde a oposição, de tão arriscada, se faz na terra queimada dos românticos e dos loucos.
Somos perfeitos? Não é desta. Mas no Marítimo respira-se como na Madeira se respirou depois daquele primeiro golpe de asa de Miguel Albuquerque.
Foi uma lufada de mar fresco.