Talvez ler
No meio da “abominação da desolação”, como se diz nas Escrituras, que é a presente situação política do país, com a farsa da discussão do OE 2022 e respetivos exercícios de bricolage e coreografia orçamental (citando de cor os jornais), mais o impudor dos “pais da pátria” nos seus cacofónicos apelos ao que chamam de “estabilidade” — não apenas rir, mas sobretudo ler, será mesmo o melhor remédio. É por isso que não podemos deixar omissa uma espécie de “alegria literária” que é a publicação do último romance de Jonathan Franzen (JF).
Franzen é considerado um dos mais brilhantes ficcionistas norte-americanos. Nascido em 1959, publicou três grandes romances: “Correcções”, aclamado como “o grande romance do século”, que lhe valeu o National Book Award 2001, e o elogio, nada despiciendo, de um dos “papas” da literatura americana, Don DeLillo, que sublinhava: “JF construiu um poderoso romance com o fluxo da consciência de um matrimónio, uma família, uma cultura inteira”; “Liberdade”, é editado em 2011 em Portugal, ano em que JF foi capa da Time (honra que há mais de uma década não era concedida a um autor vivo), com as palavras “o grande romancista americano” em grande destaque (o livro foi considerado pelo NYTimes uma “obra-prima da ficção americana”); “Purity” é publicado em 2015, sendo considerado pela crítica uma sátira impiedosa (e polémica) que capta com mestria o estado do mundo.
Ora, é precisamente vinte anos depois de “Correções” que JF faz sair “Crossroads”, cuja edição portuguesa chegou esta semana às livrarias sob o título “Encruzilhadas”. Embora a sua leitura funcione individualmente, a edição americana informava que o romance fará parte de uma trilogia, “A Key to All Mythologies”. Essa “chave” vai abrir para os últimos cinquenta anos da família dos Hildebrandt, sendo que este primeiro livro situa a sua narrativa num tempo bastante curto e mais recuado face ao dos romances anteriores (do final de 1971 a princípios de 1973). Como escrevia, no E-Revista da semana passada, o crítico José Mário Silva (JMS), numa primeira apresentação do livro, é plausível que JF possa ter na parede à sua frente, quando está a escrever os seus romances, a celebérrima frase com que Tolstoi inicia a sua “opus magnum”, “Anna Karenina”: “Todas as famílias felizes são iguais; as infelizes são-no cada uma à sua maneira”.
É bem verdade: a família é o microcosmos fundacional que o tempo vai desdobrar em espaço de relações, um corpo complexo que desenvolve ideias, ações, memórias, emoções, bloqueios e sonhos — camadas sobrepostas que perfazem a mitologia originária, aquela que vai desencadear (e explicar) as pequenas mitologias individuais das “encruzilhadas” quotidianas. Grande observador, Franzen sempre se mostrou um exímio anatomista do agregado familiar e dos seus ocultos “esqueletos no armário”, ao mesmo tempo que uma forte arquitetura narrativa permitia que cada história viesse joeirar o “ar do tempo” e, ao leitor, captar o insustentável ruído do mundo.
A “arte do romance”, como bem explica Kundera, será tudo menos brincadeira inócua: a boa estratégia romanesca é sedução e (auto)conhecimento. Nunca, como em “Encruzilhadas”, considera JMC, tivemos tão nítida “a vibração de vidas humanas normais, com o seu tédio e os seus abismos escondidos”, em que somos “sugados” para dentro da história.
Só falta mesmo lê-la — possivelmente, já a seguir...