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Monsenhor Feytor Pinto - Um lutador pela justiça social

Morreu, há dias, Monsenhor Feytor Pinto. Meu amigo, companheiro militante, tutor espiritual e um grande homem. “Uma das figuras mais importantes da Igreja Católica, nos últimos 50 anos”, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, que lhe elogiou a sua “capacidade de resistir e de se reinventar”.

Conheci o Monsenhor em 1982 na Pastoral Social que presidiu durante mais de 30 anos e na qual participei quando exercia as funções de Secretário Adjunto do Governo de Macau. Daí para cá fomo-nos encontrando periodicamente e sempre que vinha a Lisboa não deixava de o visitar no seu gabinete no Centro Paroquial da Igreja do Campo Grande, que era a minha paróquia desde muito novo.

Bom comunicador, dizia-se incapaz de ficar “preso em ideologias, a partidos, a opiniões que podem ter um contraditório”. E terá sido neste reconhecimento de pouco talento para a obediência cega que o colocou (em 2005, era já pároco do Campo Grande) na mira de um grupo de católicos chocados pelo facto de ter admitido atenuantes para o uso do preservativo e até para o aborto.

Foi “um lutador pela justiça social que deixou uma marca muito positiva nas questões da bioética”, elogiou também o padre e professor Anselmo Borges, referindo-se ao seu papel enquanto membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

Recordo ainda que em 1983 fez questão de preparar comigo a minha participação no Congresso do MIIC (no Movimento internacional dos Intelectuais Católicos) em Londres e, por isso, a minha gratidão pessoal.

Mais tarde, no início do novo milénio tive a oportunidade de participar com Monsenhor Feytor Pinto no Conselho Nacional do Voluntariado, eu em representação do Governo Regional da Madeira e o Monsenhor como representante do Ministério da Saúde. Foi uma oportunidade impar de conhecer melhor o sentido ético e solidário deste padre e da sua catequese em favor do bem comum.

A sua Igreja tal como a do Papa Francisco, é de uma enorme proximidade. Vítor Feytor Pinto conseguiu estar onde era difícil permanecer: nos hospitais, nos centros para toxicodependentes ou onde fosse necessário prestar o serviço.

Não posso esquecer, porque é justo referir, a solidariedade manifestada por Monsenhor no meu conflito com o Governo Regional da Madeira, em 2007, de forma pronta e inequívoca, que me levou à demissão de Presidente da Segurança Social da Madeira. Era o Padre Vítor um homem solidário e determinante na defesa dos menos protegidos.

Feytor Pinto teve a oportunidade, desde muito cedo, de acompanhar as duas últimas secções do Concílio Vaticano II e por isso, na sua carreira religiosa, nunca o isolou ou sequer o afastou do mundo que o rodeava. “Foi fantástico”, recordava mais tarde o Padre Vítor que debitava a “responsabilidade sócio-política” dos católicos ou a ideia de uma igreja que liberta e que salva” a um clero nacional que, “não estava preparado para vibrar com o Concílio” e insistia em manter toda a distância com o mundo, sobretudo se ele acarretasse problemas, fome, miséria ou tensões políticas.

Pelo seu lado, sempre quis abrir horizontes. Ou, dito pela sua própria boca: “ser ponte, ser ponte. Eu não preciso de por o capote para ser Igreja e sei que a Igreja tem de estar metida dentro do mundo. Por tanto eu tenho de servido a Igreja, servindo o mundo: como Padre Vítor a paróquia é uma comunidade de comunidades. Exemplo disso eram as nossas conversas de café, no Café Luanda, na Avenida Estados Unidos, em Lisboa, que se transformavam em verdadeiras catequeses, ao fim do dia, antes de ir jantar com um familiar que morava nas redondezas.

A este propósito dizia o Padre Vítor: “como cristão tenho o dever de influenciar a comunidade humana, de provocar mudança.

Em vez do “ter”, partilha: aquilo que eu tenho não é meu. Como diz toda a teologia, os bens não são da pessoa, são de toda a comunidade; eu tenho de gerir os meus bens não como possuidor, mas como administrador, ao serviço do bem comum, repartindo com dignidade, com sentido de oportunidade, com equilíbrio. Em vez do “poder” o serviço: não compreendo a autoridade sem consciência do serviço responsável. Aquele que exerce o poder (sindical, autárquico, partidário ou outro) tem de compreender que não aufere de uma situação de privilégio, mas que está a servir a comunidade, sendo necessário que esse sentido seja visível e em tudo exemplar. Em vez do “prazer”, a felicidade da comunidade: É redutor alguém viver exclusivamente focado em que tudo lhe corra bem, pois vão surgir momentos em que terá que assumir sacrifícios, e então vai precisar de os assumir com alegria, no seio da sua comunidade humana.

Outro aspecto que é particularmente interessante falar em Monsenhor Feytor Pinto é sobre a morte. Para o Padre Vítor a morte não lhe fazia medo. E para que as dúvidas não restassem há mais de duas décadas tratou de deixar isso bem claro, no testamento vital que fez questão de escrever pelo seu próprio punho. “A vida neste mundo é um dom e uma bênção de Deus, mas não é um valor absoluto”.

“Acredito que a morte me abra o caminho para a vida verdadeira, a vida que não acaba”.

O Padre Feytor Pinto era expressivo e colorido quando falava sobre a morte, “estava profundamente convencido” de que “no céu temos preparado um banquete com as mais maravilhosas iguarias”, como referia o profeta Isaías. Mas o Padre ia mais longe. “Eu acrescentaria: deve lá haver, de certeza, trouxas de ovos, de que eu gosto muito”.

“A morte é apenas uma porta, do lado de cá está no limite da natureza.

Não é a bondade de Deus, não é um castigo de Deus. Mas o limite.

A morte é um limite da natureza.

Do lado de lá está a ternura maravilhosa de Deus com que nos acolhe”.

Monsenhor Feytor Pinto, o querido Padre Vítor, sempre foi referido e reconhecido pela sua fidelidade, criatividade e entusiasmo pela igreja que amamos.

“O Padre Vítor Feytor Pinto consagrou-se há muito entre nós, como figura notável na síntese entre a fé cristã e o mundo actual” disse o então e saudoso Presidente da República, Doutor Jorge Sampaio.

Homem sacerdote da geração do Concílio Vaticano II, apaixonou-se por uma Igreja em diálogo com o mundo. Como diz a Gaudium et spes, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças dos discípulos de Cristo”.

De inteligência e memória privilegiadas, não esmagava os outros porque sabia ouvir e usava uma diplomacia inata sendo capaz de mobilizar, com energia e generosidade e de fazer-se próximo e solidário. A sua palavra nunca era arrogante, porque conhecedora da fragilidade humana e impregnada da misericórdia de Deus – “vai e não tornes a pecar”. Mas porque preparava com rigor as intervenções, a sua palavra transformava-se numa catequese fundamentada, esclarecedora e interpelante. O cristianismo que pregava não era de facilidades mas de exigência evangélica. Porém, com voz firme e decidida nunca deixava de nos “encharcar” com os sinais da ternura de Deus.

Termino dando a palavra a Monsenhor Feytor Pinto: “eu sei que a Igreja tem de estar metida dentro do mundo, portanto eu tenho de servir a Igreja, servindo o mundo. E aí, o meu grande vade-mecum, Gaudium et spes: dignidade humana, comunidade humana, actividade humana e família, vida económica-social, cultura, política, paz. É muito simples: os grandes valores estão sempre cá dentro, não posso sacrificá-los nunca”.

Paz à sua alma.