Crónicas

As autárquicas: mandar no País

1. As sondagens são tão dependentes, voláteis, e influenciáveis como outra coisa qualquer. Esqueçam a margem de erro. É possível que os portugueses gostem de gozar o prato ao telefone.

2. Com a derrota no Funchal, o PS-Madeira regressa às margens, e o PSD-Madeira reafirma-se como partido hegemónico. Sem uma ameaça interna ao Governo Regional, sem uma expressão credível de pluralismo democrático, a Madeira vai voltar a ser a aldeia do Astérix. O acesso aos cargos políticos e aos recursos públicos é laranja, e o poder disputa-se, de novo, a partir de dentro do PSD. Não é evidente a forma como tudo mudará, mas é evidente que tudo mudou. E há nisso mais mérito do PSD renovado do que demérito do PS governante.

3. Os políticos falam das autárquicas como se nelas se discutisse mais do que a administração de um território. Têm razão. Nas autárquicas disputa-se, também, o domínio sobre a população desse território. Convém perceber porquê. Portugal é um país periférico, simultaneamente isolado do Atlântico, do Mediterrâneo e do centro da Europa. A civilização escorre para cá com atraso e contrariada. Apesar de uma ou outra fabriqueta, o país não se industrializou. A produção doméstica e a fragilidade do mercado interno não autorizam uma expansão comercial consequente. Vive-se da terra (incluindo os imóveis), de negócios preordenados (como o turismo), e do tráfico de circunstância.

A classe média, porém, vive do Estado: do emprego, do subsídio, da encomenda e da subvenção. Era, e é, uma classe dependente do Gabinete, e de certa forma criada por ele. Desenvolver Portugal implica mudar uma cultura antiga, o que não se faz reduzindo a derrama ou o IMI, ou sequer com a panaceia do investimento público, que prolonga o problema quando não o agrava com défice e impostos.

Precisávamos de abertura, e da exigência e sentido crítico que a abertura traz. Precisávamos, em suma, de transformar Portugal numa sociedade cosmopolita e esquecer as fronteiras, que nos sufocam e limitam. A resposta à eterna crise portuguesa não é nacional, e muito menos “pública”. A nova emigração já compreendeu essa realidade elementar. Nas capitais de distrito, em recantos mais ou menos perdidos, há nódulos de excelência e de confraternização de expatriados e portugueses regressados, que apostam o seu dinheiro e conhecimento nas terras dos outros

Mas essa abertura existe em doses profiláticas, e nunca curativas. O fechamento interessa, e interessa muito. Num território assim fechado, mandar na paróquia é mandar no País. É ter o comando da paz social, fundada numa rede lícita e ilícita de favores e obediências. É natural que os políticos estejam satisfeitos. Conhecem-nos naquilo em que não nos queremos reconhecer. Nem mudar.

4. O Bloco de Esquerda passou de 12 para 4 vereadores. No total, não chegou a 3% dos votos. Ligando a televisão, ninguém diria. Louçã, no Conselho de Estado, no Banco de Portugal, no comentário no Expresso e na SIC, é uma espécie de arcebispo da extrema-Esquerda pátria. As irmãs Mortágua são presença semanal na casa dos Portugueses, tal como Daniel Oliveira e Ana Drago. O Presidente do Grupo Parlamentar e a líder Catarina Martins são dos simpatizantes com menos visibilidade.

Dá-se o caso de o Bloco ter mais comentadores do que vereadores, e em breve mais cronistas que deputados. É mais penetrante, respeitado e até “popular” nas classes dominantes da imprensa e da academia do que no povo votante. A ironia não é novidade. Quem combate a burguesia fá-lo pelo desejo – secreto – de se tornar parte dela. E a representação dos oprimidos por interposta pessoa diz tudo sobre o ego da pessoa interposta. A luta continua, mas talvez não por muito tempo. A hipocrisia começa, felizmente, a cansar.

5. A Iniciativa Liberal é um epifenómeno, provocado pelo recuo estatista e gerontocrático do PSD e pela derrota da linha de Paulo Portas. Continuasse a Direita na trajectória de 2015, e a Iniciativa seria uma linha programática interna, uma tendência daquele espaço.

Sendo um partido, porém, pode ser muitas coisas. No seu melhor, uma forma de comunicar às pessoas uma visão mais desempoeirada da vida em sociedade, alertando para os riscos da omnipresença do Estado. No seu pior, um derivado revanchista do PSD e do CDS, com mais protesto do que reforma.

Um partido precisa de disciplina e sentido programático. A IL deve afirmar-se pelo que é, e não por aquilo que o PSD e o CDS não são, como aconteceu em Lisboa. Se a IL na prática representar apenas uma forma - egoísta - de roubar votos à encarnação mais liberal da coligação PSD-CDS, e assim contribuir liquidamente para manter a Esquerda no poder, arrisca-se a voltar ao vazio de onde nasceu. E era bem feito.

6. Santana Lopes não tem 7 vidas. O que tem é aquilo que nos jogos de computador se chama de ‘save point’: o sítio, bem lá atrás, onde a personagem salva o jogo e ressuscita depois de morrer numa parte mais difícil do nível. O de Santana fica na Figueira da Foz.

7. O pecado do PS é o orgulho, a soberba, o que os gregos chamavam de hubris e o que os portugueses chamam de bazófia. O PM em campanha num carro à velocidade a que ia o do Cabrita, culpas sacudidas para o capote dos serviços, eleições tratadas como formalidades no país que é ‘deles’ antes de o ser. No seu pior, o PS acha que é o Benfica, o BES, o monopolista do fundo europeu, o grupo que abafa e prevalece sobre o indivíduo, que se junta a ele porque não o pode vencer. Felizmente há um outro país, e até um outro PS, que precisa destas marretadas para pôr o coração no sítio certo.

8. Nas autárquicas conta a ideologia, mas conta sobretudo o trânsito e os acessos, os passeios e o asseio, a qualidade e o custo de vida. Certos autarcas governam para um cidadão modelo: ciclista, rico, com estacionamento e casa no centro da cidade. Sucede que estes cosmopolitas de lycra não são uma maioria, e ninguém está disposto a sofrer o inferno diário da inconveniência pela recompensa incerta de uma abstracção. As cidades são coisas concretas. Não são um discurso.

9. O preço das casas vai continuar a aumentar. Não foi desta que as eleições aboliram a Economia.