Fátima de escolhidos e de medos
O recente filme “Fátima, história de um milagre”, oferece surpresas nos cenários de exteriores e interiores, leituras sobre soldados desaparecidos e mortos na I Grande Guerra. O relevo dado à guerra contrasta com a Mensagem a pedir que se reze pela paz, feita pela Senhora que se vê e ouve falar. Vem do céu, não tenham medo, rezem e ofereçam sacrifícios pela paz e os pecadores. As cenas do acreditar da Lúcia e do não acreditar da mãe e do Pe. Ferreira impressionam. A mãe ameaça: porque te devia aparecer a ti, és especial? O Pe. Ferreira insinua que o demónio a leva a mentir. O estranho visitante entrevistador da Lúcia, já no Carmelo, assume conversas de psicologia, inconsciente e psicanálise para ir até ao fim da compreensão humana. A Lúcia não arreda pé da sua posição: aceitávamos sofrer, estávamos dispostos a tudo pelos pecadores, como o Anjo e Nossa Senhora pediram. A visão do Inferno mais levou as crianças a rezar pelos pecadores e não vir outra guerra pior.
O medo estava presente dos dois lados, mas não do lado das crianças; eram as escolhidas. O administrador não podia acreditar por medo de perder a posição política perante os chefes de Lisboa; ao passo que a esposa não concorda com o fanatismo antirreligioso de fechar a Igreja, prender as crianças e ameaçar o povo. O marido mantém-se firme em não acreditar e pressiona as crianças a dizer que mentiram com medo que seja verdade e perca vantagens políticas.
Acreditar ou não acreditar, querer e não querer acreditar, e em quê, era a questão. As crianças viram e ouviram, foram escolhidas e acreditaram no que Nossa Senhora lhes disse. Era do Céu. Não tinham medo de nada, mas sofriam por não a acreditarem. A mãe e o Pe. Ferreira, viviam o medo que não fosse verdade e uma filha mentirosa, vergonha da família. No padre o medo era que não seja verdade e a Igreja fique desacreditada. O administrador e os seus superiores jacobinos tinham medo que seja e verdade e fiquem mal vistos por usarem de ameaças e forças policiais contra o povo supersticioso. O medo teria levado o administrador a corromper o médico apresentado no filme a declarar que não observou qualquer transtorno nas crianças. A questão para o administrador era não haver transtornos. Convinha que houvesse para desacreditar tudo. Tinha razão: o transtorno mental limita e pode anular a liberdade religiosa, e levar à ilusão sem credibilidade.
Numa palavra, a liberdade religiosa, os medos e a fé autêntica estão em jogo nas aparições de Fátima e noutras. Na mãe de Lúcia desonrava a família; na autoridade do concelho por pressão de Lisboa fez um inquisidor. O alvoroço das aparições estava a desagradar aos seus chefes. Por cautela eclesial também o Pe. Ferreira se pôs ao lado dos medos da mãe com a possível tentação do demónio. Até que ponto teria acreditado neste primeiro período? Mais tarde foi um organizador anual de peregrinações, em que me inseri logo aos sete anos.
Enfim, uns têm medo de não ser verdade e outros, medo de que seja verdade. Fátima é uma mensagem de liberdade evangélica que pode ajudar a discernir motivações e dúvidas. Nos videntes aparece mais o sofrimento sem medo. A firmeza de terem sido escolhidos apela à fé e confiança na Mensageira e a aceitar o “sofrimento salvífico”. As crianças sem medo de pressões e ameaças acreditam por confiar na Senhora que viram. A Lúcia não desiste, mas sofre, por não poder ajudar a mãe com a mentira. É animada pelos primos, Jacinta e Francisco. Algum sofrimento está sempre presente nas aparições. O sofrimento não bloqueia a coerência da fé, nem o dom da missão a cumprir para a qual se sabem escolhidos. A fé acompanhada da confiança de ser escolhido fortalece os videntes abençoados para testemunhar o dom da fé e dizer o que lhe foi revelado. Por isso os videntes autênticos sentem-se dispostos a tudo suportar, sofrimentos e sacrifícios. Aceitaram livremente, cumprem. Os descrentes por liberdade negam-se a aceitar mesmo perante o milagre perante 70.000!
Porquê, foram os pastorinhos escolhidos para esta missão? Esta escolha torna-se um mistério de fé que vai para além das couraças mundanas. O mistério abre fendas por onde os escolhidos comunicam com o divino numa dimensão que só pode ser de graça e de fé. Os porquês, só Aquele que escolhe sabe. Os escolhidos sabem o suficiente para o viverem e testemunhar mesmo com sofrimento se isso fizer parte da missão recebida.
Aires Gameiro