Crónicas

Do campo para a cidade, da cidade para o campo, e vice-versa

FOTOGRAMAS

Nas últimas duas semanas fiz neste espaço alusão a (uma parte muito restrita) do trajeto migratório da família de Dona Eugénia Fernandes, madeirense nascida na Fajã dos Padres que parte da ilha em 1960 rumo a Niterói, Brasil, no navio Vera Cruz, com o filho pequeno, Manuel, a própria mãe, e dois irmãos. Aí, junta-se ao marido e a parte da sua família direta que já se encontrava por lá.

Ao longo dos anos, Dona Eugénia irá trocar fotografias com familiares igualmente de origem madeirense que se encontravam em Boston, para onde tinham por sua vez migrado, e, naturalmente, com a família do marido na Ribeira Brava, Madeira. Os textos destas próximas semanas irão em grande medida centrar-se em algumas destas fotografias enviadas então por via postal e no seu papel afetivo na construção de uma rede familiar.

É o caso desta imagem, um retrato em estúdio, na Madeira, (mais do que) provavelmente feito no Funchal, onde figura a mãe e irmãs de Marcelo Fernandes e respetivas sogra e cunhadas de Eugénia, — as mesmas que estão no retrato reproduzido na semana passada, feito cerca de treze anos antes deste: Conceição sentada ao centro as filhas, Isabel e Maria Domingas, do lado esquerdo, e Conceição (filha) e Laura, do lado direito.

A foto foi enviada por Conceição (mãe) para a família em Niterói em inícios da década de 1960 (em 1961 ou 1962). Trata-se de uma atualização para os entes queridos que se encontravam longe do rosto dos familiares próximos, embora distantes.

Anos mais tarde, nos finais da mesma década, envia um aparente conjunto de fotografias da Ribeira Brava para Niterói, através do qual se parece efetivamente visar estabelecer uma con-vivência à distância. É provável que as fotos que o compõem tenham sido enviadas todas de uma só vez, parecendo inclusivamente terem sido todas tiradas no mesmo dia. Tratam actividades típicas da terra de origem, de um universo doméstico, de um quotidiano ou de actividades associadas a uma sazonalidade rural. Há um desejo de efeito cómico que as atravessa. Surge explicitamente na inscrição de uma delas — “isso é só para rir” — onde três das irmãs aparecem, (à semelhança do retrato feito anteriormente em estúdio e aqui reproduzido a semana passada), com vestidos iguais. O carácter lúdico da imagem ao nível da construção da sua mise-en-scène é igualmente evidente numa outra foto do conjunto onde surge de novo Conceição com as filhas, sentadas em círculo no exterior da casa da família, a bordar. Na imagem, o acto de bordar parece estar cuidadosamente disposto para a câmara, a postura frontal das mulheres contrastando com a postura lateral de uma criança de colo e a cabisbaixa de uma outra que aparenta ter cerca de dois anos, sentada no lado direito do quadro. No centro surge um rádio que tinha sido enviado por Marcelo de Niterói como presente, aparente marco tecnológico contrastante com uma cena no restante bucólica e que, se não fosse esse elemento, nos remeteria para um certo arcaísmo, qual símbolo de uma aldeia de origem marcada pela tipicidade de hábitos e costumes ‘intemporais’. A presença do rádio parece assim assinalar que, apesar da aparente imobilidade dessa sociabilidade rural, esta também vê os seus hábitos permeados pelos aparelhos de reprodução técnica, vindos ou não do lado de lá do Atlântico, e que aqui se incluem no próprio dispositivo fotográfico.

Do campo para a cidade, da cidade para o campo, e vice-versa, nos vários trânsitos que as imagens ainda hoje atravessam.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.