Crónicas

O Bazar Orçamental

Para entender Portugal – na sua indolência, na sua ignorância, na sua estrutura económica – basta constatar que o preço dos combustíveis não suscitou ainda um qualquer tumulto ou insurreição civil

Portugal, Estado pequeno e corporativo, tem uma justa obsessão com o “consenso”. A obsessão segue mais ou menos assim: se somos tesos, e se somos poucos, só a amizade, a concórdia e a unidade nos podem levar adiante, e vencer as forças terríveis que colectivamente nos ameaçam. E assim o país deslumbra-se, periodicamente, com coligações, acordos, e manobras parlamentares. Como se representassem o afastamento de divisões circunstanciais, e como se o País só não avançasse por falta de “consenso”.

Sucede que a História demonstra o inverso. É precisamente por Portugal contar tostões e devê-los ao Mundo inteiro que o “consenso” não desponta nesta terra. Quando existe, não é uma expressão de cavalheirismo político, de cedência ou compromisso quanto ao real sentido da vontade popular. É um acordo de poder, e o resultado amargo e indigesto de uma chantagem.

Eis onde nos trouxe, em 2021, o “consenso” da Geringonça.

Marcelo Rebelo de Sousa, representante do centro político, acena com um cenário de crise – dissolução e eleições – em caso de rejeição do Orçamento.

O PAN, fiel ao seu ideário de reunião de condomínio, aprovou a despesa do Estado em troca da proibição de touradas para menores de 16. Mas para os lados do PCP e do BE, o parto está mais complicado. Para as bagatelas eleitorais em que se tornaram, começam a custar caro.

O chumbo continua a parecer improvável. BE e PCP não têm interesse em ir a eleições. E, se os parceiros de geringonça votarem contra, o PSD, por pressão do Presidente ou responsabilidade, pode deixar o Orçamento passar.

Mas, ainda que improvável, não seria estúpido. Pela cabeça de António Costa e de Rui Rio devem passar pensamentos deprimentes. E se fossem a eleições? O Primeiro-Ministro pode julgar que chegou a sua vez de tentar a maioria absoluta, e refastelar-se desimpedido nos fundos da bazuca. Rio, inchado das autárquicas, pode convencer-se de que ganha, e assim forma Governo com o CDS, a IL e o Chega, enquanto afasta do mesmo passo a oposição interna.

De uma forma, ou de outra, bela herança a da Geringonça. Um País e um orçamento que não se governam sem dobrar aos caprichos das extrema-esquerda e direita. E um centro político maioritário, mas que só se tolera na lógica marginal da salvação nacional ou do resgate de carreira pessoal.

O “consenso”, que se dá e recusa por razões triviais e interesseiras, é de novo a fachada para uma democracia meramente eleitoral, em que o voto, uma vez depositado, se coloca ao serviço dos caudilhos e clientelas dos partidos.

Nem o Governo, nem a oposição se dedicam a perceber que o verdadeiro consenso implica um Estado com dinheiro, mas sobretudo um país com crescimento económico. E essa bandeira caiu, e continuará a cair, enquanto os grandes partidos não se sentarem à mesa sem os inimigos do mercado, da riqueza e da globalização.

O povo sabe do que fala quando descreve as casas onde não há pão.

João Rendeiro

Vai por aqui um engano. Quanto a João Rendeiro e à sua índole, mas sobretudo quanto à natureza do dinheiro.

Ao contrário do que se diz, o dinheiro é a coisa menos materialista que há. Bem vistas as coisas, cada euro é um repertório de futuros possíveis. Pode ser um jornal, um café, um bilhete de lotaria. Pode ser investimento, poupança, aforro, juro. Se for muito, pode até ser a lealdade, a fidelidade e o prestígio.

O dinheiro é abstracto, é tempo futuro. Tempo flexível, tempo criativo, tempo nosso. Ficar sem dinheiro é, de muitas maneiras, como ficar sem tempo. Não é um dado oculto nem fabuloso. É um facto cultural, que sabemos desde a Antiguidade. Na tradição grega, os mortos pagavam ao barqueiro Caronte para que os levasse para o Além, para o Hades. Essa última moeda – o último óbulo – não representa o fim da riqueza: representa o fim do tempo, e sobretudo o fim da escolha.

Prender um rico envolve, por isso, uma contradição. É acabar com o tempo e a liberdade de quem se distinguiu precisamente por acumular tempo e liberdade, liquidamente exprimidos através do dinheiro. A prisão, para Rendeiro, não seria uma pena. Seria um aniquilamento, pois aboliria a riqueza em que assentou a sua identidade.

O seu percurso, agora revisitado na comunicação social, é o de um fura-vidas, que compensava em ambição o que lhe faltava em velhas relações pessoais no Porto e em Lisboa. Um homem industrioso e competitivo, que procurou nobilitar-se pelo dinheiro e por um certo exibicionismo social – incluindo o clássico e exageradíssimo mecenato artístico – a que as elites nacionais nunca conseguiram resistir.

A magnificência de João Rendeiro, que ele promoveu e os media divulgaram, era porém um sintoma de insegurança social. Assim como a espécie de cúmplices e de trapalhadas com que a seguir se envolveu.

Era um self-made man revanchista, com algo a provar ao País que abandonou. E provou que eram feitos um para o outro: ele o ídolo com pés de barro, Portugal o idólatra embasbacado. Como muitos dos amores de fogo, são eternos enquanto duram. O exílio, bem vistas as coisas, é a melhor das penas. Castiga-o, mas também nos castiga por tanta e tão deslocada admiração. Fugindo, Rendeiro pagou ao barqueiro a última moeda. Acabou-se o tempo, e acabou-se a escolha, no único sítio que lhe podia ter dado tanto valor

A gasolina

Para entender Portugal – na sua indolência, na sua ignorância, na sua estrutura económica – basta constatar que o preço dos combustíveis não suscitou ainda um qualquer tumulto ou insurreição civil.

O Primeiro-Ministro não só recusa baixar o imposto assaltante, como ainda lhe chama política ambiental.

Não deixa de ter razão. Do lado de lá da fronteira, respira-se cada vez melhor.