Crónicas

Memórias encarnadas

Merece especial referência, tanto pela importância como pela raridade do ato, a publicação de um inventário no âmbito dos chamados Bens Culturais da Igreja, neste caso, sob o título “Paróquia de Nossa Senhora do Monte: Património Móvel e Integrado”. A concretização de uma iniciativa deste tipo — com tudo o que pressupõe de mobilização de vontades, para dar corpo ao esforço e determinação que sempre precedem estas realizações — enaltece a vida daquela comunidade e vem recolocar na alta dignidade do testemunho todo um historial da sua memória crente, acedida na partilha comum de um legado intemporal de espiritualidade e beleza. Que são, como bem se sabe, mas por demais se esquece, realidades sempre “encarnadas”. Isso quer dizer que, na origem e destino desses “bens”, existe uma óbvia dimensão histórico-cultural: cada época e contexto humano “fazem” a expressão artística da sua vivência religiosa.

No cristianismo, encarnação é mediação: na arte e pela arte, uma gramática muito própria da intencionalidade crente ganha corpo numa profusão de linguagens — dos têxteis à ourivesaria, da madeira ao vidro e ao papel — capazes de grande potenciação simbólica: elevarem do visível ao invisível e fazerem a ponte do individual ao comunitário, onde se fortalecem sentimentos de identidade e pertença como só o religioso é capaz de configurar, sobretudo quando esses “bens”, sobrelevados na sua matéria e função, resultam de uma espécie de “artesania orante”, em que o cultural se transfigura em cultual e, pela sua contemplação e uso, um sentido se ilumina e uma comunidade se reencontra.

É essa dimensão encarnada que torna a “arte sacra” testemunhal e catequética, mediando aproximações humanas à compreensão do Mistério que tudo envolve, na pura revelação do seu próprio dom (Salvação) e do seu próprio acontecer (Beleza). As comunidades cristãs sempre foram o lugar próprio desta “experiência”, que procura não só dizer e celebrar a fé, mas refazer, pela beleza que não morre, a unidade e o sentido da existência, face à vida estilhaçada, ou à absurdidade quotidianamente recusada.

Assim, todo o processo de inventariação/catalogação constitui passo fundamental para a salvaguarda, conhecimento e divulgação dos bens culturais e artísticos. O inventário permite resgatá-los ao anonimato e à usura do tempo, refaz o sentido de comunhão e partilha, e projeta no presente o rosto criativo de uma dada comunidade (como bem lembra o Padre Estêvão Fernandes na sua esclarecida introdução). Realmente, é disso que se trata: revisitar toda uma herança patrimonial e artística que é um legado de fé e cultura e, nesse olhar, colher inspiração e impulso para novas criações — ou para, a partir dessa contemplação, começar nova iniciação, onde se recupera para a pedagogia da fé toda uma antropologia das mediações humanas, histórica e culturalmente encarnadas. Isto irá sempre exigir, face ao secularismo e ao avanço da fealdade, uma atenta “didascália” que introduza os contemporâneos na fala profunda dessas mediações antigas, cuja compreensão pode fazer expandir no presente a dinâmica criativa e comunicativa da comunidade crente. É verdade que, cá entre nós, não temos dado grandes contributos nesse sentido. Mas, que o presente inventário tenha sido co-editado pelo Secretariado Diocesano da Educação Cristã, podendo contagiar outras iniciativas semelhantes, isso traz de facto um augúrio de esperança.