Superfícies de memória, mas de que memória?
FOTOGRAMAS
Na semana passada referi a vaga migratória da década de 1940 para o Curaçau, dizendo que em Niterói, Brasil, em 2015, tinha estado com Dona Eugénia Fernandes, madeirense residente há décadas naquela cidade, que então me tinha mostrado uma imagem de um cunhado que tinha precisamente migrado da Madeira para aquela ilha das Antilhas Holandesas. Ora, ao invés do que então escrevi, a imagem de uma venda tipo mercearia que me foi mostrada onde figura esse familiar de nome próprio David (o terceiro, numa leitura da imagem da esquerda para a direita), não foi feita no Curaçau mas sim em Caracas, Venezuela. E David nunca migrou para o Curaçau, esteve uns anos em Caracas voltando depois para a Madeira.
Como age aqui a fotografia? Como superfície propícia a uma apropriação memorial e discursiva, situada na dupla tensão entre uma evidência marcante e um silêncio mistificador. Neste caso, de algum modo não me dei ao trabalho de verificar em detalhe a restante documentação associada à imagem, cuja digitalização obtive há anos e que de antemão conhecia, naturalmente. E isso foi em parte um lapso e em parte um gesto propositado. O lapso é óbvio, falhou-me a memória do relato da imagem e não me dei ao trabalho de verificar as minhas notas da altura, até porque a referência à fotografia não era de todo central ao texto em questão na semana passada. Já o propósito (apenas semi-consciente) serve para realçar o caráter facilmente apropriável da imagem técnica. Este torna-se um eco menor de uma situação que vivenciei e sobre a qual reflecti por escrito aquando da pesquisa que fiz com emigrantes portugueses no Brasil, entre 2015 e 2018. Ou seja, em vários casos, mesmo aqueles de pessoas que tinham produzido, endereçado, recebido ou colocado em álbuns imagens tão pessoais como retratos dos seus filhos, houve não raramente situações em que se confundiram contextos, trânsitos, personagens, dizendo-se que uma coisa numa imagem tinha representado algo ou decorrido num local ou época que na realidade não tinha sido, não tinha ocorrido. Como pude então saber que não era verdade o que me diziam? Porque reparei que aquilo que escutava entrava em contradição com outro(s) elemento(s): por exemplo, a inscrição da imagem, a sequência de imagens dos próprios álbuns, com informação presente em outros documentos a que tinha tido previamente acesso, com o relato de outros familiares, etc. Uma pesquisa de uma fotografia é portanto, ou deve ser portanto, sempre uma pesquisa de um dispositivo composto por uma multiplicidade de documentos, testemunhos e gestos com as imagens. Um dispositivo composto por uma miríade de fragmentos que importa questionar.
Porque terei então evocado uma ida para o Curaçau no contexto de um encontro com aquela família? Porque efetivamente ouvi um relato de uma ida para o Curaçau, ainda que não me tenham mostrado imagens dessa pessoa lá, sendo a pessoa em questão não David mas o sogro de Dona Eugénia, pai de seu marido, Marcelo Fernandes, por sua vez chamado Augustinho Fernandes e apelidado de Carriço (nascido a 5 de janeiro de 1913). Augustinho parte da Ribeira Brava em junho de 1946 rumo ao Curaçau, deixando a esposa Conceição com cinco filhos pequenos: Marcelo nascido a 12 de fevereiro 1939; Maria nascida a 17 de agosto de 1937; Maria da Conceição, nascida a 15 de dezembro de 1940; Laura, nascida a 27 de julho de 1944 e Isabel, nascida a 21 de março de 1946.
Augustinho Fernandes não irá voltar à Madeira. Do Curaçau segue o padrão migratório evocado na semana passada, indo para a Venezuela, onde constitui uma nova família, não tornando a ver esposa e filhas madeirenses. Aquando da breve passagem de três anos do próprio Marcelo pela Venezuela, de 1957 a 1960 (irá daí para Niterói, onde se instala definitivamente), este tem um breve contato com o pai e conhece a sua nova família. E é mesmo na Venezuela que o dito Carriço irá morrer já em 1990. Márcia Fernandes, filha de Marcelo e de Eugénia, contou-me que a sua avó Conceição permanece todos esses anos na Madeira com um grande sentimento de abandono, sustentando o filho e filhas essencialmente através do bordado. Nunca volta a unir-se a outra pessoa e, aquando da morte do marido, coloca luto, vestindo-se integralmente de preto. Márcia relata ainda que a primeira vez que vem do Brasil à Madeira, em 1986, visita naturalmente a casa da avó que lhe mostra uma fotografia em estúdio, onde posa com todos os filhos pequeninos. Márcia repara que junto ao rosto da avó então jovem, foi feito um buraco com uma tesoura e inserido por detrás um retrato fotográfico do rosto de Agustinho Fernandes, o marido que já desde aquele momento fotográfico Conceição não tornaria a ver. Ou seja, munida de papel e tesoura, esta faz uma fotomontagem artesanal.
De novo questiono, como age aqui a fotografia? Como prática mais do que simbólica provavelmente agenciadora de uma união afetiva; mais do que ato de memória, ato indicador de que a memória e vivência matrimonial, familiar, é ainda operativa apesar da ausência do cônjugue. A fotografia, pois, como agente/símbolo de uma convivência, apesar da distância e do abandono.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.