Sim, é outubro outra vez
Agora, sim, é outubro. Voltar, regressar, recomeçar. Os verbos indiciam ação, há que pôr-se de novo a caminho. Regressar ao lugar donde nunca saímos, é verdade, pois recomeçar — a partir da página em branco, ou nas quotidianas tarefas interrompidas — é sempre um retomar da vida que temos em mãos, voltar ao lugar nosso e ao que de facto somos, mas deixando assomar o entusiasmo de um novo começo: agora sim, cogitamos, talvez se consiga voltar a sério ao trilho nosso de cada dia, onde nos queremos mais próximos da verdade que alimenta a condição e a utopia — a nossa existência inteira, tal como aí se manifesta e se sente a própria respiração da vida.
Agora, sim, é outubro, que sempre foi um mês de recomeços. Lá longe, no tempo da infância, era aí o início de muita coisa nova, a escola, os amigos, a progressiva consolidação das expetativas que alimentavam a lentidão dos dias, a vida sem excesso nem amargura, apenas pontuada pelo sorriso de uma utopia breve que nos puxava para diante. Perdurava ainda quente toda uma memória dos dias azuis, longos e quase felizes — e isso bastava para alimentar a alma de todos os recomeços, o sonho e a realidade caminhando juntos, mesmo na melancolia ou no desacerto da sofrível rotina quotidiana. Crescer e amadurecer não era para brincadeiras, e o futuro não estava já ali à frente, nem tão à mão como isso: certo, mesmo, só o verão que haveria de vir nove meses depois, eis as férias compridas outra vez, sabendo a mar e a lapas vivas da maré vazia, e a figos bem maduros lá pelo fim das tardes de setembro. Depois, sem grandes avisos, chegava outubro de novo, sublinhando o devir imparável de uma ordem antiga e o anúncio de vários recomeços.
Agora, sim, é outubro de novo, mas este recomeçar é já outra conversa. Reinventamos sempre, uma e outra vez, a ilusão das férias, intervalo possível onde gostamos de alojar um vislumbre de sentido ou de felicidade, face à paisagem sombria de um quotidiano de rotinas e desalento. Recomeçar já não terá, talvez, o sabor de uma inesperada aventura: empurram-nos, antes, para a estafada normalidade, pautada pelas propagandas do “dia da libertação”. Covidianamente cilindrados pelas determinações pandémicas, assoma-se, apesar de tudo, à janela da vida, a hipótese de retomar a marcha: face ao passado recente e a um tempo que sentimos longo e perturbador, marcado mais pela submissão que pela alegria, ansiaríamos por um recomeçar que fosse a experiência de um novo começo, nem deduzido do passado, nem normalidade reciclada, mas uma espécie de nova aurora, algo como redescobrir o saber e o sabor da vida autêntica — e ganhar ânimo para existir em presença e inteireza a cada dia renovadas.
Sim, é outubro outra vez, e queremos acreditar que algum futuro vai ser possível. Para trás queremos deixar a memória dolorosa das coisas tristes: da vida cerceada dos vivos, e do esgar da morte de tantos que nem tiveram tempo para morrer. Sim, vamos conseguir levantar-nos do chão, mas até parece que foi tudo programado, pecado, morte e redenção: nunca mais chegava o dia de respirar de novo, estava quase lá, mas havia ainda que passar pelas pequenas políticas da política, com seus ardis menores e quase sufocantes anunciando o renascer. Mas, tornou-se crucial acreditar: se estivermos atentos, descobrimos que há sempre uma fresta por onde a luz se infiltra e, com ela, na precariedade de existir, damos nova forma ao sentido e à esperança.