Análise

Para além dos números

Temos de tudo, desde Exemplares, a negligentes. Mas como o vírus não é elitista, cuidem-se

Habituamo-nos perigosamente à pandemia que mata, sem motivo aparente que justifique esta estranha afinidade com o perigo. E só assim se explica que estejamos menos prudentes do que em Março passado e mais expostos do que nunca, menos tolerantes às privações do que no tempo de dúvida acrescida perante a novidade e mais cúmplices do laxismo. Será demais pedir a quem manda um confinamento exemplar, com as devidas excepções, mais eficaz que o recolher obrigatório pontual e de outros expedientes para a fotografia de efeito quase nulo? Será demais exigir a quem devia obedecer, com respeito pelo próximo, que tenha comportamentos exemplares, sobretudo no domínio público, sob pena de ter que responder perante a justiça pelos crimes de desobediência e de atentado à vida de terceiros? Quantos mais máximos históricos serão precisos para chamar à razão quem anda de cabeça perdida? Abrir quando todos fecham não nos parece inteligente e saudável. Entramos numa fase em que para alguns os números preocupantes já não dizem tudo, em que outros relativizam os casos sem repercussão hospitalar e em que muitos ignoram as vidas suspensas ou resilientes, ambas marcadas pelo vírus e pela crise. Estamos num patamar de risco elevado, logo, mais importante do que atribuir culpas e enveredar por críticas inconsequentes, importa evitar comportamentos irresponsáveis, venham eles de poderosos ou de remediados. A Covid-19 não é elitista e não escolhe territórios, nem é motivo para dispensar o escrutínio permanente e a reflexão construtiva.

Será demais pedir explicações para o alegadamente “tudo controlado” quando os recentes testes feitos em lares e em escolas detectaram infectados sem ligação a outros casos de transmissão local, “na sua maioria já associados a contactos ou contextos de casos positivos”?

Será demais pedir o boletim epidemiológico a tempo e horas, já que surge cada vez mais tarde, perto das nove da noite, a pensar no telejornal e sugerir o regresso das conferências de imprensa diárias de Pedro Ramos, em directo e com direito a perguntas, pois agora é que fazem todo o sentido?

Será demais pedir rigor na informação prestada e transparência num processo em que a incompreensão resulta mais das contradições do que as fragilidades inerentes ao nosso sistema de saúde? Se está tudo a correr bem porque é que as autoridades de saúde referem que há toda uma terminologia que é evitada de modo a não instalar um clima de medo? E se tudo funciona lindamente porque é que quem na sexta-feira foi à testagem no Hospital Dr. Nélio Mendonça esteve quase duas horas à espera, por vezes à chuva, e confidencia ter estado perante um processo com “organização desastrosa”? Este relato não é fictício: “Primeiro não havia ninguém para informar qual é a fila onde nos deveríamos colocar. Ficamos, inicialmente, numa que não era para viajantes. Tivemos, depois de trocar, ir para uma segunda fila para recolher 4 papéis pequenos com os códigos de barras, fila onde estivemos mais de 30 minutos. Depois desta fila, segue-se uma terceira, onde estivemos todo o restante tempo à espera da colheita feita através da zaragatoa... Não se convoca uma centena de pessoas para a mesma hora, quando não se tem capacidade de resposta. Afinal é ou não é possível amontoar pessoas? Parece-me que alguém está a fomentar o que nas TVs se diz para evitar?! Quem definiu esta forma de organização nas colheitas, não sabe o que está a fazer”.

Estamos num tempo decisivo no combate à pandemia. Sejamos exemplares, cumprindo e ao mesmo tempo agradecendo aos que nas mais diversas profissões desafiam o comodismo e correm riscos, sobretudo aos profissionais de saúde que não desistem de dar a vida pelas causas que acreditam e pela dignidade dos que sofrem. Sejamos implacáveis em relação aos prevaricadores, denunciando os que promovem ajuntamentos negligentes, ou idas em bando à neve e às ponchas. Sejamos cooperantes. Não é preciso morrer um dos nossos para nos darmos ao respeito. Não é preciso haver casos dramáticos nas empresas para que o teletrabalho seja incentivado. Não é preciso um susto para acordarmos. Cuidem-se!

Fechar Menu