Crónicas

E, no entanto, a vida

Como é que a esperança se liga com a morte?

Ano novo: o dealbar de uma nova esperança. A vacina: o corpo tornado viável, a esperança em cumprimento. Tudo em nome da vida, bem maior, que recusa ser aniquilada.

E, no entanto, a morte.

Parece óbvio: se há vida, a morte vem. O corpo existe: desde o início que nele se inscreve a morte. Mas, porque somos — e não apenas temos — um corpo, a vida será o território desse duelo, em tensão vibrante entre a recusa do desaparecimento e o sonho da permanência. Ser um corpo insere-nos em totalidade na pura dádiva de existir: cumprir-se em humanidade é estar vivo-no-mundo-com-os-outros, sobrelevando a vida face à iminência do fim. Todos os dias a morte nos acena no espelho, e todos os dias o quebramos: a esperança, força maior, faz-nos sair de casa, todos os dias a vida agarrando a vida, pequenas vitórias realizando — corpo e espírito — a epopeia individual e coletiva da permanência, simultaneamente dom e tarefa humana, sempre em risco e sempre inconclusa. Sim, a vida não é possível sem a dinâmica da esperança.

A verdade é que a finitude não é uma abstração filosófica, mas a experiência mesma de existir. A morte põe termo à finitude, realiza-a, por assim dizer, e todos os dias somos “apanhados” por ela, seja no espetáculo distante dos cadáveres que se amontoam a cada telejornal, seja na dor ou na mágoa pela morte abrupta, sempre inesperada, de amigos e conhecidos. Por exemplo, logo nestes dias ainda de bons votos em sorridente esperança, eis-nos confrontados com mortes “mediáticas”: Carlos do Carmo, Jorge Ventura, João Cutileiro. É no falecimento dos que tinham mais presença no dia a dia do mundo, ou nos eram mais próximos na amizade e no amor, que a morte, por regra sempre “dos outros”, deixa de ser abstrata e distante, para tornar-se “íntima” e verdadeiramente interpelante — agora a olhar-nos nos olhos, desde o horizonte do nosso próprio destino. Carregamos a nossa finitude: a morte não se afasta.

E, no entanto, a vida.

A morte é, desde sempre, um tema obscuro e difícil. A religião e a filosofia expressaram a tentativa de trazê-la à linguagem, mas tudo o que se conseguiu foi contornar o abismo que medeia entre o antes e o depois e, como numa imagem em negativo, aquilo de que falamos acaba sendo sempre... da vida! Sim, quando a vida existe, não existe a morte. E a vida é tudo o que temos: só falamos da morte para melhor acedermos à compreensão da vida.

Sobre tudo isto, é de esperar que tenhamos aprendido alguma coisa com a pandemia. Embora vivamos hoje uma cultura que esconde e disfarça a morte, recusando o inelutável que integra a nossa própria humanidade — e nesse recalcamento se aliena quanto ao verdadeiro sentido da vida —, a verdade é que a morte se tornou por estes dias demasiado presente para que a possamos ignorar. De alguma forma, ela cerca-nos, e ao nosso modo de vida, por os lados. E, no entanto, toda a nossa luta, de indivíduos e de nações, é para levar à recuperação da vida como a conhecíamos — sem confinamentos, livre, solidária e amiga, na legítima expressão dos afetos, da proximidade, da interajuda, enfim, da alegria de estar vivo. Então, não é o ignorar a morte, mas a diligência e o cuidado para que a vida não sucumba, antes se afirme com novo vigor. Esse é o trabalho da esperança: uma vigilância ativa que, integrando a morte, reafirma contínua e solidariamente a dignidade e a bondade da vida.

Se não, por que lutaríamos tanto?

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