Com a abertura manifestada por D. João VI em relação ao acolhimento de judeus em Portugal, a partir da década de 1820, várias famílias sefarditas, provenientes do Norte de África, instalam-se nas ilhas atlânticas. Foi o caso dos Bensaúde, nos Açores, e dos Abudarham, na Madeira. Foi precisamente no seio desta família que, a 18 de março de 1880, nasceu Joana Sultana Abudarham, no casarão assobradado da rua dos Ferreiros onde residia a extensa família da avó Clara Abudarham, a conhecida “Viúva Abudarham”, empresária dona da casa de vinhos do mesmo nome, que tomara as rédeas do negócio familiar após a morte do marido.
Filha de Jacob Abudarham, distinto comerciante e ilustrado intelectual, e de Simy Buzaglo, bem conhecida na sociedade madeirense pelas sua incansável atividade filantrópicas, Joaninha, como foi conhecida até à juventude, cresceu rodeada das mais ecléticas influências. De intelecto notável, e beleza exótica de odalisca, cantou-a António Nobre no madrigal que lhe dedicou, em 1899, tinha ela 18 anos: “São as meninas da Ilha da Madeira / Ternas, graciosas, pálidas, ideais. / Fica- se doido, vendo-se a primeira, / Doido se fica se se vêem as mais, / Qual é a mais bela da Ilha da Madeira, / se são todas iguais?", logo rematada por outra, de qualidade ligeiramente inferior, da autoria do funchalense D. Domingos Teles da Gama, filho dos condes de Cascais e grande amigo e companheiro do poeta: “- À Senhora D. Joaninha - Meu amigo Antonio Nobre diz / que todas são tão bellas / No entanto eu repáro, que ha uma entre ellas. / Oh, meu Deus! que formosa, que elegante que bella é! / Desde o alto da cabeça até á ponta do pé. / Alma grande e gentil, / Onde o mal não poisou. / É tão meiga tão subtil / Que a todos nos encantou!“.
Por esta época, Joana Abudarham contava entre as suas amizades chegadas outras jovens que se viriam a se notabilizar, como a escritora Luzia e sua prima Beatriz, notável enfermeira filha dos viscondes de Geraz do Lima, a escritora Laura Veridiana de Castro, e a ínclita geração das irmãs Sauvayre, constituindo-se como uma elite de mulheres cultas e ricas, com intensa vida intelectual e social. De nacionalidade francesa, desde muito jovem Joana viajou para o estrangeiro, muitas vezes em companhia de algumas destas amizades - em particular Luzia, que a adorava, e com quem viajava frequentemente pela Europa - o que lhe abriu horizontes que o confinamento insular não permitia. Tal como a mãe e a avó, preocupava-se com os mais desfavorecidos, sendo membro da Cruz Vermelha da Madeira, em cuja condição acudiu aos feridos da Revolução de 1931.
Possuidora de uma personalidade artística, foi atriz em peças de teatro escritas por Matilde Sauvayre da Câmara, na companhia da fina flor da sociedade de então, que se realizavam a maior parte das vezes com intuitos beneficentes. Participou também da organização de eventos diversos cujos proventos se destinavam a apoiar causas como a Escola de Artes e Ofícios ou os mutilados da guerra, a Assistência aos Indigentes da Madeira, e a Sociedade Protetora dos Animais Domésticos do Funchal, que presidiu por muitos anos. Assim, por exemplo, em fevereiro de 1939 encontramo-la, logo após a esposa do então governador civil do Distrito do Funchal, Maria Lívia Nosolini, encabeçando a lista de subscritoras promovida pelo Diário de Notícias do Funchal, para a compra duma peça de bordado madeira a ofertar a Anne Chamberlain, esposa do então primeiro ministro de Inglaterra, Neville Chamberlain, em reconhecimento pelos esforços que vinha desenvolvendo em prol da Paz mundial; e em maio de 1944, doando uma avultada quantia ao fundo de socorro das viúvas e órfãos da tragédia do “São João”, barco naufragado no temporal de 5 daquele mês, quando andava na pesca do atum para os lados do Porto Santo, como noticiou o Diário de Notícias na edição do dia 21 desse mês. Acreditamos também que seja esta a “Joaninha” que D. Francisco de Castro e Almeida, pai da sua amiga Laura Veridiana, refere no seu poema “O Cotillon Pic-Nic”, publicado neste Diário em Agosto de 1908, a propósito do lançamento do novo Lactário da Assistência a Crianças Fracas, fundado por D. Eugénia de Canavial, descrevendo a incrível quantidade de belas flores de papel de seda de todas as cores que “Joaninha” confeccionara para oferecer em troca de uma doação para o lactário durante o “Cotillon Pic-Nic”.
Em outubro de 1903, Joana, que perdera o pai tragicamente há pouco mais de um mês, casa-se com o alferes António Bettencourt da Câmara, de uma antiga família nobre madeirense, ela própria com raízes cristãs-novas, os Matos Coutinho. António vem a falecer prematuramente, deixando-a viúva com duas filhas. Joana muda-se então, em companhia da mãe, para a Quinta de São Roque, cujos salões passam a acolher regularmente a intelectualidade do Funchal, em saraus e tertúlias por si organizados, que ficaram na memória. Faleceu nessa quinta aos 96 anos, em 8 de janeiro de 1976, sendo a última pessoa a ser sepultada no cemitério israelita do Funchal, ao lado dos pais. Curiosamente, a sua bisavó paterna, Reina Pariente, havia sido precisamente a primeira pessoa a ser enterrada naquele cemitério, em fevereiro de 1854, assinalando-se, assim, um fim de ciclo desta comunidade hebraica, que ao longo de século e meio marcara de forma tão viva o Funchal.
A casa da Quinta de São Roque infelizmente já não existe, demolida cerca de 2004 pela Universidade da Madeira, com vista à ampliação do conjunto universitário, que nunca chegou a se concretizar. A residência onde nasceu, pelo contrário, classificada como imóvel de interesse municipal em 1999, ainda hoje marca, com as suas belas molduras de cantaria vulcânica, o cenário urbano da rua dos Ferreiros, nela funcionando desde cerca de 2000 o Instituto de Investimentos e Gestão das Águas. Numa curiosa coincidência, o edifício terá sido levantado originalmente no século XVII precisamente por uma família de origem cristã-nova, os Lopes Vila Real.