O bom, o mau e os bailarinos
Para além dos lamentos cansados aos números da abstenção, poucos foram os que se levantaram perante a incapacidade do Estado em facilitar a vida a quem quis votar
De quem é a culpa? A culpa é do vírus. A culpa é da estirpe britânica. Da estirpe brasileira e da sul-africana. A culpa é do Passos. Da direita, dos liberais e dos privados. A culpa é das escolas que querem ensinar à distância. A culpa foi do Natal. Do fim do ano e do dia de reis. A culpa é do frio. A culpa é dos empresários que procuram sobreviver. A culpa é de quem pediu abertura e de quem exigiu confinamento. A culpa é dos jornalistas. A culpa é das pessoas. A culpa é sempre dos outros. Por cá, a culpa não se tem, transmite-se. Mais depressa do que um vírus.
O bom: Digital Nomad Village
A pandemia mudou-nos. Mexeu-nos com a vida, alterou-nos a rotina e forçou-nos a novos hábitos. Nem a forma como trabalhamos escapou à vontade do vírus. O trabalho ganhou prefixo telemático e as salas de casa reinventaram-se como cubículo de escritório. E enquanto trabalhadores e empresas se veem a braços com uma desmaterialização imposta, há quem, há muito tempo, tenha feito do mundo o seu local de trabalho. Os nómadas digitais. Sem local de trabalho fixo, mas com todas as condições para trabalhar. Hoje em Londres, amanhã em Paris. O projeto Digital Nomads Madeira pretende acrescentar a Madeira a esse roteiro, de quem trabalha sem pousada certa. Outros já fizeram o mesmo. A Estónia criou um programa de vistos específico para nómadas digitais. Cabo Verde criou um regime fiscal favorável para esses trabalhadores. Por cá, o primeiro passo será dado na Ponta do Sol, com a instalação do projeto-piloto Digital Nomad Village. Não só como forma de criar condições a quem quer trabalhar remotamente, mas também como maneira de criar impacto positivo na economia local. Um projeto muito interessante e que merece réplica noutros concelhos da Madeira.
O mau: Abstenção nas Presidenciais
Como sempre, todos ganharam as eleições. Ganhou a segunda porque ficou à frente do terceiro e, com isso, impediu o assalto fascista a Portugal. Ganhou o terceiro, porque já tinha dito que ia ganhar. Ganhou o quarto, porque os comunistas nunca perderam uma eleição. Ganhou a quinta, porque acabaram as eleições e pôde arrastar-se de regresso a Bruxelas. Perante tamanha partilha democrática da vitória, impressiona que ninguém se tenha lembrado que mais de metade dos portugueses não votaram. Para além dos lamentos cansados aos números da abstenção, poucos foram os que se levantaram perante a incapacidade do Estado em facilitar a vida a quem quis votar. Com o país em estado de emergência, esta teria sido uma oportunidade única para reinventar a forma como se vota em Portugal. O voto eletrónico, como já se faz noutros países europeus. Uma modalidade de voto específica para os mais velhos, que permitisse o voto em segurança. A realização da eleição em dois dias, para aumentar a possibilidade de participação. Um regime mais justo para o voto dos emigrantes e que não os obrigasse a atravessar um país inteiro para votar na embaixada portuguesa. Nada disto se fez, à exceção de um ensaio desastrado do voto em mobilidade que apenas serviu para afugentar eleitores do domingo da eleição. Todos choram a abstenção mas, para a eleição do Presidente da República, continuamos a seguir uma lei que é, na sua essência, de 1976, ano em que a telecópia era tecnologia de ponta. Ano após ano, a festa da democracia virou quermesse eleitoral. E os convidados que aparecem são cada vez menos. Curiosamente, os festeiros parecem pouco preocupados.
Os bailarinos: O PS e a vitória de Marcelo
Enquanto Marcelo se preparava para a inevitável eleição para um segundo mandato, houve quem visse nesse triunfo anunciado uma oportunidade imperdível. As eleições são um processo longo, moroso, cansativo, com resultado, cada vez mais, incerto. Razão pela qual, a miragem de uma vitória, sem a maçada da campanha, seja irresistível. Abriu-se, então, o baile pela vitória por encosto. O primeiro bailarino, António Costa, matreiro mas de pé ligeiro, esboçou um convite para a dança. Marcelo não quis dançar. Costa agradeceu, porque o convite não era sério. O segundo bailarino, Paulo Cafôfo, menos experiente mas mais polivalente no estilo de dança, dispensou o convite e lançou-se nos braços de Marcelo. O debutante não olhou a meios. Exibiu a valsa dos afetos, o tango dos consensos, até arriscou o foxtrot da estabilidade política. Acrescentou piruetas à direita, cambalhotas à esquerda e um saltinho ao centro. Poucos saberão se Marcelo reparou no bailarino madeirense, mas ninguém pode negar o esforço de Cafôfo. Eis que, já depois dos resultados anunciados, chega-nos o último bailarino. Carlos César, dançarino dócil e despudorado, que num passo de dança contemporânea saltou às costas de Marcelo e gritou vitória. Esforço inglório. Marcelo ganhou só e por si. Mas no meio de tanto bailarico, os nossos bailarinos esqueceram-se de André Ventura. Toca a reunir a companhia de bailado, temporariamente debandada, e gritar aos sete ventos que os fascistas vinham aí. Esqueceram-se do essencial. Se não estivessem tão distraídos a dançar uma música que não é sua, mas apenas por ser a que a maioria quer ouvir, talvez os resultados eleitorais tivessem sido outros. É o problema de dançar consoante as necessidades e não de acordo com as convicções.