E agora 2021
2020 foi-se, não foi o nosso melhor ano e ainda assim começou bem, parecia auspicioso e eu acreditei que seria bom, que teria tempo para tudo. Para trabalhar, escrever uma crónica ao sábado na sala de jantar do meu pai ou em casa da minha tia Conceição. Teria tempo para ir ao Museu Municipal mostrar o bicho pau empalhado, tinha prometido que iríamos, os dois, o meu pai e eu.
A doença avançava, silenciosa, mas eu sou optimista e acreditei que não era tão cedo, não me ganhava tão cedo. O meu pai estaria para ir ao museu ver os bichos e os peixes no aquário. E teria sido cá um passeio, sei que seria. O meu pai gostava de museus e, durante anos, lembrou a biblioteca joanina de Coimbra. Foi da vez que fomos fazer uns exames e, enquanto se esperava pela hora, levei-o a ver a universidade.
E ele, o homem simples nascido nos arrabaldes de Santo António, veio impressionado no comboio, onde me confessou que aquilo era “uma coisa de categoria”. O museu municipal seria a seguir, mas a vida nunca é como se imagina. 2020 mostrou-nos isso. Primeiro levou-nos a liberdade de andar por aí, de ir a uma loja ou ao cinema, depois trancou-nos em bolhas de segurança.
A ideia do museu ficou para depois, um mais tarde que não teríamos, fizemos como outros, adiámos os planos sem saber que, para o meu pai, não haveria depois, nem 2021. Foi-se antes do ano acabar, no hospital, naquela solidão a que a pandemia nos condenou. Não ficou para o passeio ao aquário, nem para os meus 50 anos, que estão quase a chegar e que me colocam perante o futuro com nova perspectiva.
Já não sou nova, não tenho a vida toda pela frente e sobram poucas pessoas da infância, daquelas que partilharam comigo a vez que bati com a cabeça no muro da casa da Idalina e a triste figura de cantar desafinado “uma gaivota voava, voava”. Sou órfã de pai e mãe. É estranho ser isso, dizem que não passa, que dói, seja aos 20 ou aos 50, mesmo quando se sabe que vai acontecer, que é natural que aconteça.
E, apesar desta estranheza, 2021 cá está, não posso, nem quero deixar de o viver, ainda que me sinta triste e perdida. Foi-se a rotina de correr para casa todas as tardes, de ver televisão no máximo, de fazer almoço e lanche, de perguntar 50 vezes se estava tudo bem. Já não tenho na cabeça as consultas, as datas dos exames e os medicamentos para comprar.
Tenho as tardes todas para mim e não é suficiente fazer bolos para as encher, há um vazio que tenho de enfrentar, quando ainda me parece que foi ontem a última vez que falámos, que lhe disse um até amanhã. Vou ter saudades, mais das que tenho já, mas 2021 está aqui para ser vivido. O meu pai não me perdoaria se não o fizesse, se não seguisse em frente, se fizer o que cabe aos vivos: viver, viver o melhor que se puder.
Bom ano.