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Lamber feridas

Estas festividades são para mim hoje em dia, uma espécie de repositório de memórias.

Visuais, olfativas, auditivas e sobretudo sentimentais.

E quanto a essas, não há vírus que entre elas e eu se intrometa, pois não há máscara estanque para esses sentidos das entranhas.

Mas tenho saudades do tempo comum da vida. Daquela vida vivida por oposição deste presente suspenso, da desconhecida conjugação do incerto futuro. Tenho sede da pulsão da cidade, dos restaurantes e dos turistas deslumbrados pela nossa terra, onde se deleitam e se deixam serpentear com as levadas que rasgam o verde espelhado.

Até ao ano passado eram notícia alguns movimentos sociais que eclodiram nalgumas cidades europeias, a pedir uma diminuição da carga turística, e a se insurgir contra a dinâmica da reabilitação urbana que o alojamento local estava a imprimir nos núcleos históricos de algumas urbes, cujos municípios restringiam mais a emissão de licenças a esse negócio em franca ascensão.

Mal sabíamos o que nos esperava em 2020 com a hecatombe que se instalou, sabe-se lá até quando.

Apesar de toda a destruição e escombros sociais à nossa volta, tenho a esperança de que destas cinzas desabrocharão oportunidades, ou não tivéssemos nós, todo um lastro de resiliência e superação ao lidar com imensas adversidades ao longo da nossa história.

Lembro-me de há um ano ter desejado um ano melhor que 2019. Hoje já não desejo nada. Apenas aspiro a um dia de cada vez.

A nossa vida coletiva mudou e temo que os horizontes de esperança que alguns almejam, estejam ainda distantes, tal como a cristã armada veneziana, que tardou no socorro de Constantinopla que capitularia perante o cerco dos otomanos no século XIII, marcando o fim duma era e o início duma outra. As sucessivas ondas do vírus que condicionam o mundo há já quase um ano, colocaram a nu as nossas básicas fragilidades. Não apenas as sanitárias, como também fazem vacilar os nossos arquétipos económicos onde a nossa vida comunitária se alicerça. Constatámos que os nossos pés são mesmo de barro e que é muito ténue, a linha que nos aparta da desamparada queda. Somos apenas um reles pano que pode ser rasgado a qualquer momento. Não há dogmas, estatuto, riqueza que nos possa dar segurança a algum devir desconhecido. A roleta-russa entre o sacrifício na economia e da saúde, é um equilíbrio quase impossível, onde o ponteiro da direção parece tender para a capacidade dos serviços de saúde acolherem nas suas unidades, quem deles vai em demanda, para contrariar os efeitos nefastos decorrentes da exiguidade dos recursos sanitários na atual crise pandémica. Claro que, entretanto, criam-se “planos de contingência” e outras denominações estereotipadas que traduzem coisas óbvias, mas nem sempre seguidas e respeitadas.

Entre a dança dos números em torno da pandemia que diariamente é posta a tocar, há exércitos numerosos que sucumbem de forma colateral por falta de assistência num serviço nacional de saúde, que mesmo antes da pandemia, funcionava pelas peles. Quando é que iremos conhecer essas estatísticas que fedem também a morte? Porque será que o tolo e escroque mediatismo dos governantes, assistido pelos inúmeros pés de microfone jornalísticos, aponta apenas os holofotes para os desafortunados do COVID, quando há magotes de gente com consultas, cirurgias e tratamentos adiados e que não resistiram, não resistem, nem resistirão?

Em setembro de 2019 a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial produziram um relatório (premonitório) intitulado “O Mundo em Risco” produzido por um grupo de trabalho formado por especialistas, que apontava que a generalidade dos países investia muito pouco na preparação e mitigação do impacto de uma pandemia global aqui localizado: (https://apps.who.int/gpmb/assets/annual_report/GPMB_annualreport_2019.pdf)

Estamos apenas a lamber (anunciadas) feridas.

Um melhor 2021 para todos!

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