O “escândalo”
Noite eleitoral: quatro horas de seca monumental na televisão portuguesa. O costume. Os candidatos a esticarem para lá do razoável a hora da “declaração”: esta é a noite em que todos ganham. Um desfiar de números pelos écrans, os comentadores tentando vislumbrar um suposto sentido para lá do expectável, ou do inesperado: os números não mentem. Finalmente, o vencedor: igual a si próprio, reforçado em legitimidade e determinação. Vamos a ver.
Bastou a primeira frase do discurso do Presidente eleito e logo se percebeu porque é que os portugueses deram 60 por cento a Marcelo Rebelo de Sousa. Basicamente, ele significa a realidade de volta, e alguma garantia de que vamos ter que cerrar os dentes, lidar com ela e ultrapassá-la — a pandemia, com o infindável cortejo de morte e sofrimento, a inexorável progressão do contágio, a devastação da economia, a vida quotidiana mergulhada num desamparo sem fim à vista. E mais: alguém vai ter que “ajudar” um governo especializado em procrastinar, que decide tarde e a más horas o que deve ser decidido — porque a realidade não se afasta e o que tem de ser tem muita força —, incapaz de, pelo menos, copiar bem o que na Europa vem sendo feito já desde fins de novembro para suster o mortal avanço da pandemia. Mas, eis que a pátria seguiu a estratégia do “português suave”, um confinamento com mais buracos que um queijo suíço, todo um cardápio de exceções e alíneas que, agora se percebeu, fazem as delícias do vírus. Para cada decisão, uma semana de reuniões, pareceres, legitimações. E o covid cada vez mais na rua e nos cemitérios, agora somos nós no filme italiano de abril passado, o pessoal da saúde em desespero, ambulâncias em fila longa demais, é como se caísse um avião todos os dias, metaforizam, há mais de uma semana que o desastre é insuportável, o avião é cada vez maior, as morgues e crematórios a ficarem sem resposta — o famoso “milagre português” da última primavera é agora um degelo siberiano que leva ministros à pública lágrima. Saúde, Educação, Economia: na enxurrada sem fim à vista, lá vai uma boa fatia do nosso futuro.
E vem o “escândalo” da noite: a esquerda cai a pique e não soma, por junto, 1 milhão de votos; e, vindos de todo o lado, 500 mil dão ao Chega... “expressão nacional”. A esquerda desculpa-se e acusa, como de costume, e só se ouve ao longo da noite um disco riscado sobre velhas esquerdas e novos fascistas, ou seja, ideologia a rodos: mas quem quer, agora, saber disso? Tal serve para quê, face ao avião cheio que cai todos os dias, face ao inverno da economia e à catástrofe do desemprego? O meio milhão de votos da extrema-direita é aquele dedo enorme que aponta a lua. E a esquerda, em vez de olhar a sério para onde ele aponta — o país real que grita mesmo à frente —, esgadanha-se em raiva e slogans, a ver se consegue... arrancar o dedo!
Lição do sufrágio: os portugueses deram a maioria a alguém que, acreditam, poderá ajudar a trazer Portugal de volta, empurrando a política para a decisão sem subterfúgios. A pandemia está na rua, a hora é de ação: maior lucidez e coragem no combate que vai ser longo. Por isso, derrotada, a esquerda só se pode queixar de si própria: a realidade não se deixa apreender pelo funil da ideologia, e as “causas fraturantes” são agora munições para os chegas que estão a sair da toca.
Um exemplo... “ideológico”: foi você que pediu, em plena pandemia e 12 mil mortos depois, foi você que pediu aos eminentes deputados da nação para não adiarem a urgentíssima aprovação da eutanásia?