A Balada de Narayama
No já distante ano de 1958, o cinema japonês era praticamente desconhecido entre nós. Por isso, a aparição do filme Balada de Narayama foi uma revelação, tanto pela novidade, como pela qualidade.
A história transportava-nos até ao Japão medieval, onde as carências eram muitas nas aldeias dispersas pelas montanhas, e a sobrevivência sempre problemática. A falta de alimentos era tal que, na aldeia representada, foi instituída uma lei: os velhos, considerados bocas inúteis, deveriam ser levados para a montanha de Narayama, e aí deixados para morrer.
Chegando aos setenta anos, uma anciã pede ao filho que cumpra a tradição. Este, viúvo, não aceita a ideia. Vergonha para a velha mãe, que se sente desonrada. Tanto insiste que ele acaba por a levar, às costas, para a montanha, deixando-a lá, com o coração despedaçado.
História antiga, decerto; impensável nos dias de hoje, dizemos nós.
Mas será mesmo assim?
Os velhos, antes tidos como repositórios das tradições e do conhecimento, foram há muito deixados para trás, primeiro pelos registos escritos, depois pelos sofisticados meios de tratamento de dados. Logo, tornaram-se inúteis – tão inúteis como os velhos da aldeia japonesa.
Resta a ligação familiar, impossível de traduzir por algoritmos. E as exigências da vida modera apontam para o indivíduo, e não para a família. E a cega economia não vê vantagem em manter quem não produz.
A presente pandemia veio a expor ainda mais esta tendência, com a agravante de os mais velhos serem presa mais fácil do vírus. Pelo que houve quem considerasse que, deixando as coisas correr o seu termo, teríamos a “imunização da manada”, com a vantagem de eliminar os “excedentes”. Só quando o vírus atacou “rezes” mais jovens mudaram de opinião (mas não todos).
Com a tradicional postura de só pensar no seguro depois do incêndio, na reforma quando se atinge o limite de idade, e na saúde quando se adoece, quanto à velhice tem-se igualmente improvisado. Posta de parte a hipótese de viver até ao fim na própria casa, com era a tradição, descobriram-se os lares da 3.ª idade. Sem comparação com o transporte dos velhos para a montanha, e com larga aceitação.
De modo que a coisa até se tornou, em certos casos, um negócio. E, na falta de oferta qualificada, vá de criar lares sem condições, em nome sabe-se lá de quê.
Dadas as características da atual pandemia, esses lares constituem locais de alto risco – pela proximidade e pela vulnerabilidade. Isso ficará decerto provado através de estatísticas.
De modo que ficamos sem saber se, ao levar os velhos para um lar, não estamos a levá-los para um Narayama dos Montes Hermínios...