O passeio dos pobres
Ao acordar, desde cedo se decide, hoje é dia de passeio dos pobres! Emancipem o corpo e a alma, mas rapidinho porque às 5 acaba a festa e às 6 detêm-se os quatro que não saem com mais ninguém e sempre viveram juntos.
Vistam-se as meninas com o hábito domingueiro, já basta de clausura e olhos em bico em frente ao computador toda a semana. Hoje é dia de esquecer a injustiça e a assimetria de saber que os meninos do primeiro e segundo ciclo e os gandulos dos cursos profissionais não são contaminados nem contaminam ninguém! Não se entristeçam, porque nós adultos também nos fazemos de tontos e fazemos de conta que não percebemos que os mais pequenos, se forem para casa, obrigam o reinado a pagar um progenitor em casa; e que os mais velhos, apesar de passarem o dia a fumar e a lesmar as línguas encostados às paredes em torno das escolas no horário do suposto ensino, se lá não estivessem provavelmente estariam a fazer qualquer coisa pior que ir contaminar os avós deles.
Cuidado ao sair de casa, todos ajudam a ver se não vem um bando de ciclistas a baforar para cima uns dos outros em filas paralelas, se tocamos nos reis da estrada ao sair de casa estraga-se já o passeio e oferecemos um bom tema de discussão para amanhã quando se juntarem todos sem máscara a confraternizar na reunião dos bares do campo da barca antes da nova corrida.
Não comecem as meninas com reclamações... este desporto é permitido bem como é correr sem máscara em grupo por entre os transeuntes a meio dos passeios.
Admirem no trajeto o voo dos parapentes! Aqueles senhores quando aterrarem vão direitinhos para casa, nunca confraternizam depois nos bares com histórias sobre o magnífico voo!
Temos de explicar com clareza... os legisladores do reino imaginaram que os vossos desportos ao ar livre e individuais constituem um perigo social maior, como os desportos de grupo em ambiente fechado, nem que seja porque isso poderia espicaçar a inveja pelo mínimo de qualidade de vida que teriam.
Vejam bem os pais e compreendam: nós, por exemplo não podemos jogar golfe a caminhar quilómetros de ar puro com uma bola em que mais ninguém toca. Seria muito perigoso correr o risco de nos juntarmos depois a socializar.
Compreendam que sensato é deixar os ginásios abertos, senão o que seria daqueles corpos suados de esforço em cima de máquinas comuns uns aos outros, e o que seria da economia dos esteroides anabolizantes? É sabido que são ambientes seguros, são atletas que não confraternizam e que o que se diz por aí que se trata de um ambiente em que atletas viris tocam mais nas bolas uns dos outros do que os golfistas na sua própria bola não é, pelo menos, 100% verdade!
Agora o almoço e bico. Rapidinho e de máscara até ao serviço para não sermos criminosos por tentar ajudar o último fôlego do comércio. Mastiguem depressa porque estes selvagens são perigosos: investiram na redução das mesas, gastaram fortunas em toneladas de papel para guardar o talher, adaptaram-se a estes menus virtuais ranhosos e ainda por cima puseram gel alcoólico à discrição por todo o lado! Bem feito que fechem cedo!
Vamos apreciar pelo caminho o colorido das gentes nos bares de poncha e afins, apinhados até à porta. Vejam que lindo, todos sentadinhos, clientes conscienciosos e fiscalizadores. Nem vivalma de ciclistas, atletas de corrida, de ginásio ou parapentistas!
Direitinhos para casa, sobram 30 minutos para passear os cães, e horas para pensarem que um dia também terão idade para votar. Aproveitem para pensar se querem no futuro um mundo igual a este em que os que decidem não têm de pensar nem de ouvir. Apenas ordenar como será o vosso passeio dos pobres!
Duarte Franco