Análise

É preciso mais do que um “sobressalto”

Se a uns cabe “ficar em casa” a outros compete governar bem, sem palpites, nem hesitações

António Costa pediu aos portugueses um “sobressalto cívico” de modo a travar máximos históricos de mortes e infecções sem precedentes por covid-19. É pouco ou quase nada. No combate sem tréguas à pandemia devastadora de vidas e de recursos é preciso bem mais do que uma inquietação de última hora de efeitos quase nulos, do que um arrependimento circunstancial pelos crimes cometidos, desde a desobediência ao contágio por omissão, do que um recolher compulsivo para não agravar um serviço nacional de saúde tomado de assaltado por um microrganismo que não deixa margem para hesitações e do que o confinamento obrigatório com elevado nível de excepções. Dificilmente quem se habituou ao desleixo, patrocinado por decisores sem escrúpulos e consentido por cidadãos avessos à correcção fraterna, emendará comportamentos se não for educado desde o berço para valores determinantes e que nesta altura podiam fazer a diferença. Por isso, desafiando teimosias e experimentalismos, sabemos que muitos pais recusaram levar os filhos à escola, em claro contraste com a irresponsabilidade criminosa de quem conviveu com terceiros com todos os indícios de que estaria infectado.

Nunca é tarde para tentar não contribuir para números assustadores. Mas agora só com uma boa dose de sorte e com consciência individual acrescida é que podemos contribuir para o achatamento de todos os registos catastróficos. Após tanto estado de emergência, comprovadamente ineficaz, urge contrariar eficazmente o caos instalado. As imagens que nos atormentam, para além de eloquentes não devem deixar indiferentes aqueles que podem fazer a hora. Dói ver dezenas de ambulâncias com doentes a aguardar vez à porta das urgências hospitalares em colapso, a suspirar pelo atendimento impossível. Dói ver gente sem máscara a passear ao abrigo do sol de Inverno, atrelada ao cão ou ao carrinho de bebé, portando-se como marginal da saúde pública. Dói ver a alienação à solta no circuito insular das ponchas, da neve ou dos saldos. Dói ver políticos desesperados a assumir culpas que nada resolvem em contexto de tragédia ou a sacudir para outros as competências que lhes estão confiadas. Dói ver o desespero instalado nos incapazes de assumir a impopularidade de colocar quem governa a ter prioridade na vacinação. Dói ver a exaustão dos dedicados profissionais de saúde, também eles, aos milhares, infectados sem merecerem tamanho castigo. Dói ver a dor daqueles que nem podem estar no último adeus de quem amam. Dói ver a procissão da morte a que ninguém escapará prematuramente se mantiver hábitos delinquentes.

O “sobressalto” que nos pedem tem sido permanente, mas há ainda umas verdades por dizer. Senhor primeiro-ministro, como depende de cada um de nós contribuir para que não se percam mais vidas em vão, pedimos-lhe encarecidamente que:

. Governe. Está legitimado para decidir, de preferência, bem e de forma atempada, sem palpites e sem comprometer os direitos humanos e os constitucionalmente consagrados.

. Não culpe os portugueses por todos os males pandémicos, porque muitos, mesmo tendo ficado em casa, sobretudo os mais velhos, sem escolha, foram barbaramente infectados.

. Não ostracize indignamente nenhum dos cidadãos, mesmo aqueles que com posturas negacionistas, desrespeitam regras e princípios básicos de vida em sociedade. Esses precisam de correctivo exemplar, com elevação e propósito pedagógico.

. Não demore a distribuir pelas contas dos portugueses o dinheiro que lhes é devido, dos impostos pagos a mais no ano passado, das perdas geradas pelos sucessivos confinamentos, das linhas de apoio a fundo perdido.

. Seja justo. Não use este tempo de privação acrescida para sufocar financeiramente as Regiões Autónomas e todos aqueles que não são da sua família política.

. Não finja estar surpreendido. Os especialistas fartaram-se de avisar para os perigos de um Natal desafogado.

. Não nos leve a perder o que nos resta, a esperança.

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