“Trumpismos”
A tomada de posse de Joe Biden não vai aplacar o “estado de cisma” que se vive na Igreja dos Estados Unidos. Há feridas muito profundas. Num editorial de 7 de janeiro (dia seguinte à invasão), escrevia o National Catholic Reporter (NCR) que “há muita culpa em circulação” pela “vergonhosa invasão do Capitólio” por uma multidão de direita e “entre aqueles que têm alguma culpa pelo fracasso da insurreição (...) estão mais do que algumas lideranças da nossa igreja. Os apologistas católicos de Trump têm sangue nas suas mãos”. O mesmo editorial explana razões para isso: “católicos do dia a dia” a votarem em Trump após quatro anos de incompetência, apelos racistas e ataques às normas democráticas; incentivos fiscais e subsídios para escolas católicas; doutrinação direitista e tendenciosa nos “media” católicos de todo o mundo — eis como o editorial do NCR procura “explicar” a situação crítica a que chegou a igreja americana; por isso, muitos dos “nossos líderes religiosos” que perpetuam “a própria supremacia branca” que levou ao golpe, devem tentar “reconstruir uma cultura política de confiança e unidade”. E finaliza, considerando Biden “um homem decente” que assumirá o comando da nação e iniciará a longa e árdua tarefa de “reconstruir a nossa democracia. Os católicos precisam embarcar juntos para ajudar, e não atrapalhar, esse processo”.
O Papa Francisco tem alertado para os movimentos fortemente politizados por tendências populistas e nacionalistas, travestidos de religiosidade sectária e fanatizada, mas que trazem no bojo toda uma cultura do ódio, que divide o mundo em “nós, os bons”, de um lado, e “eles, os maus”, do outro. E o Papa já viu este filme: a crise económica, o radicalismo populista e o medo foram, na Europa dos anos 20, o detonador que fez o triunfo dos extremismos totalitários. Como não ver semelhanças com a situação de risco que hoje enfrentam as democracias face à crise mundial que, num mesmo imenso caldeirão, remexe e faz ferver tão perigosos ingredientes — pandemia e degradação ambiental, pobreza e injustiças globais, dominância dos populismos e medo face ao futuro?
Neste horizonte de receio e dificuldades concretas, a Igreja, os cristãos e suas comunidades têm sido um espaço de humanização e de esperança. Mas, também na Europa, há radicalismos obscurantistas que se reclamam da fé para levarem por diante propósitos mais sombrios.
Li algures que uma organização católica polaca, sediada num elegante bairro de Cracóvia, está a desenvolver em vários países da Europa e no Brasil um “modelo de negócio” ligado ao nome de Fátima. Durante anos, a Fundação Skarza enviou para milhões de caixas de correio toda uma panóplia de objetos-tipo do Santuário (rosários, imagens, calendários, etc.), pedindo apenas um donativo em troca deste aparentemente inócuo “merchandising da fé”. Uma investigação da cooperativa de jornalistas Reporters Foundation penetrou os meandros da organização e estima que vários dos milhões arrecadados tenham ido “abastecer” movimentos cristãos ultra-radicais, que partilham uma visão tridentina da igreja com ideologias populistas de direita. E, é claro, combatem os “demónios” contemporâneos, com este Papa à cabeça.
Como se enfrenta, na perspetiva da fé, tão perigoso obscurantismo? Necessariamente com o “mea culpa” pelos compromissos dúbios, mas também com maior lucidez crítica, trazida por uma sempre atenta e informada racionalidade crente — a aliança da fé e da razão na denúncia dos “trumpismos” que usam a religião para poderem, um dia, esmagar a democracia e a liberdade.