Crónicas

O Careto de Podence

Vivemos uma era onde predomina o descartável. Num dia temos utilidade e, no outro, somos só uma vaga ideia

1. “Pintar as beiças de vermelho é combater o fascismo? Porra, nunca pensei que fosse tão fácil…”

Escrevi isto no meu Facebook, na semana passada, e foi ver a indignação daqueles que, principalmente à esquerda, admitem a saga simbólica como dimensão da política, os que não percebem que a verdade está nos factos e não nos juízos que deles se fazem. O simbolismo é interessante, mas não passa de simbolismo, de uma manifestação carregada de subjectividade, carregado de imprecisão. E a besta alimenta-se disso mesmo. Gosto muito mais de realismo porque as coisas são o que são.

Não quero dizer que não percebo a carga simbólica. Só a acho, no assunto em questão, muito pouco interessante e objectiva.

Não tenho nada contra quem pinta os lábios pensando que isso chateia o Ventura. Cada um tem a liberdade de fazer o que bem quiser e entender. Como eu tenho essa mesma liberdade de pensar que isso é pouco mais do que nada. Limita-se a alimentar o “bicho”, que fica todo contente e nem agradece. A questão é que há quem pense ser com este folclore que se o derrota. Não é, como ficou provado nos debates que teve com as candidatas que se deixaram enrolar no esterco onde a criatura se mexe à vontade. Bernard Shaw disse que nunca se deve lutar com um porco, ficam ambos todos sujos e o porco gosta.

Mayan e Marcelo (os tais da horrível direita) mostraram como se faz. Ventura levou um baile dos dois e bem que tentou puxar o debate para a pocilga onde tão bem se sente. Não conseguiu, e teve de ir para um terreno onde a sua cabeça é um deserto: o terreno das ideias. Não perceber isso, é não perceber nada.

Ventura manipula os sentimentos mais básicos das pessoas: o medo, a raiva, o descontentamento, o ressentimento, a incapacidade que muitos têm de se aproximarem do próximo, daquele que lhe está ao lado. Estes sentimentos são facilmente alimentados com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. São os “faits divers”, a mesquinhez, o que é pequenino, o sórdido, a infelicidade e a desventura que lhe dão alento.

Que fique claro que não defendo que se deva ignorar André Ventura e o Chega. Não tem, sequer, categoria para Voldemort. A divergência está no modo. Derrotá-lo no campo da verdade, das ideias e dos factos. Que é onde lhe dói, que é onde não sabe nadar.

Continuem a dar-lhe de comer estas coisas e depois queixem-se da criatura que ajudaram a alimentar e a criar.

2. Nas últimas Presidenciais votei em Marcelo Rebelo de Sousa. Nos seus cinco anos de mandato, Marcelo passou o tempo a desiludir-me. Poucas foram as vezes onde lhe vi as razões que me levaram a lhe dar o voto.

Foi uma bengala de António Costa, em nome de uma tal de estabilidade apoiada na Geringonça, que fez mais mal do que bem.

Desde o visitante cinco milhões dos Clérigos, passando pelas “selfies” e pelos afectos que não resolveram nada nem coisa nenhuma; o assobiar para o ar, ignorando a defesa do direito constitucional da continuidade territorial; a mãozinha por baixo da não recondução de Joana Marques Vidal; o inenarrável discurso, na tomada de posse do novo Presidente do Tribunal de Contas, a tentar justificar o injustificável; o não comemorar os 600 anos entre nós na data certa, usando uma desculpa esfarrapada; o ter promulgado (o que o torna co-responsável) as alterações à lei do subsídio de mobilidade que nunca foram implementas; a indescritível nomeação de Centeno para o Banco de Portugal; o fechar os olhos ao compadrio e nepotismo montado pelo PS; a garantia dada a Albuquerque do aval do governo ao empréstimo pedido pela Madeira; o assobiar para o ar, no caso SEF; os inenarráveis decretos presidenciais dos Estados de Emergência; a jigajoga dos cerca de 80 testes COVID que já fez; e por aí fora. Por tudo isto, Marcelo cansou-me. Transformou-se numa prima-dona.

O que me divertiu, entre nós, e por algumas das razões acima expostas, foi ter mesmo surgido, no seio do PSD M adeira, a hipótese da candidatura de Miguel Albuquerque à Presidência. Marcelo, nem vê-lo.

Agora é vê-los a dizer o contrário, ou a fazer contrições para ir a correr votar no Careto de Podence.

3. Vivemos uma era onde predomina o descartável. Num dia temos utilidade e, no outro, somos só uma vaga ideia. Esquecemos rapidamente o passado, de tão importados com o umbigo que estamos.

Eu não esqueço, não sou desmemoriado.

Vou votar em Tiago Mayan Gonçalves porque, como eu, é um liberal. Um liberal que transporta consigo uma carga ideológica, num tempo em que a política se transforma numa espécie de “fast food”. No Tiago vejo a defesa dos nossos “direitos naturais”, como os definiram Locke e Paine, revejo o humanismo cívico de Jefferson e Mazzini, leio a história que evolui por etapas, como o escreveram Smith e Constant, noto a necessidade de algum utilitarismo bebido em Bentham e Mill e sinto a presença da sociologia histórica de Tocqueville. Foi com este discorrer que o liberalismo passou a abraçar a democracia e a rejeitar visões orgânicas da sociedade que conduzem sempre à unicidade das maneiras de pensar e à colectivização.

E, chegados ao século XXI, onde Mayan representa a crítica ao historicismo de Popper, o protesto anti-totalitário de Orwell e Camus, a ética do pluralismo de Isaiah Berlin, o neo-evolucionismo de Hayek e a sociologia de Aron.

Um voto certo e que, de certeza, não me levará a arrependimentos.

4. São muitos os sinais de que o sistema político americano se está a desfazer. Os últimos quatro anos são a ponta do icebergue de um país que se esqueceu do que é a democracia e que começou a confundir liberdade com libertinagem.

O que aconteceu a 6 de Janeiro no Capitólio foi gravíssimo. Como foi gravíssima a comuna que vingou, em Seattle, durante uns meses, no verão do ano passado, com assaltos e ocupações de esquadras da polícia, com a definição de zonas da cidade onde a polícia era impedida de entrar.

Tanto uma coisa como a outra, são inadmissíveis ataques à democracia, à liberdade e à autoridade do Estado.

Fiquemo-nos por estes dois exemplos.

Peguemos mesmo, cronologicamente, no último dos dois: o ataque feito, pela extrema-direita, à sede do poder legislativo.

Num comício de apoio a Trump, o pior político que alguma vez pisou solo americano, onde desfilaram no palco uma série de idiotas a preparar a intervenção da alaranjada figura, há um claríssimo pedido para que se marche sobre a sede do Congresso que se preparava para reconhecer os resultados eleitorais. Este pedido, digno de um lunático inconsciente, foi feito pela primeira figura do Estado. Irresponsável, louco, demente, à frente de uma turba de alucinados insanos e histéricos.

Foi o caos. Os representantes do povo fugiram, ou esconderam-se, e os desordeiros trumpistas, vindos de uma “América profunda”, tão funda que não passa de um buraco sem sentido, posavam para “selfies” e gravavam, que nem desalmados, a porcaria que faziam na casa da democracia. Um morto ao vivo e a cores, e mais quatro mortos subsequentes. Como em Seattle, as forças da autoridade e da ordem legítimas, durante algum tempo, não estavam em lugar nenhum.

Pela primeira vez, tivemos a oportunidade de assistir a uma distopia ao vivo.

Os Estados Unidos estão feitos numa casa em que todos ralham e ninguém tem razão. Nem democratas, nem republicanos. Se a triste figura de Trump dá mais nas vistas, o estado a que chegou a América tem, também, responsáveis do lado dos democratas. Não há violência boa, nem violência má. A violência é sempre de repudiar, venha ela de onde vier.

A crise nos “good old USofA” não é diferente das que ocorrem por esse mundo fora. Uma crise global política, de saúde pública, de identidade, social, demográfica e, evidentemente, económica. As reacções é que vão sendo diferentes.

Se a dupla Biden/Harris, que toma posse depois de amanhã, não pensar para além da caixa, se democratas e republicanos não derem as mãos para sarar a América, muitos outros episódios como estes se seguirão. E isso é mau para a América, é mau para o mundo.

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