Crónicas

O recolher obrigatório da adolescência

Sou de um tempo em havia hora marcada para chegar a casa, fosse rapaz ou rapariga e lembro-me de ouvir o meu pai dizer que “isto não é uma a pensão, a porta não fica aberta toda a noite”. Claro que esta advertência não me dizia respeito, o meu recolher obrigatório acontecia mais cedo, à tardinha. Isto era conversa para o meu irmão que, no fim da adolescência, encarnava o James Dean, com a gola do casaco levantada e o caderno de poemas dentro do bolso.

E tinha liberdades que não me eram permitidas como passar férias com os amigos no Porto Santo, ir a discotecas e à viagem de finalistas do liceu. Eu invejava-o quando o via sair de casa para os bailes de Carnaval dos hotéis, mas comigo a história era outra, com horários mais estritos e movimentos limitados a pouco mais do que o essencial, de casa para a escola e da escola para casa sem paragem nas esplanadas da marina. Entre o toque de saída às seis e o autocarro das sete havia pouca coisa que se pudesse fazer.

Eu ainda passava na tabacaria para comprar revistas ou ia à livraria ABC, onde a senhora do andar de cima, deixava-me pagar às prestações os livros que ia escolhendo das prateleiras. Nunca me podia demorar, se perdesse o horário das sete tinha, depois, a minha mãe no cimo das escadas, com ar de poucos amigos e um interrogatório difícil do onde, com quem, por quanto tempo e qual motivo para ir à livraria a seguir às aulas. Às vezes, muitas vezes, a minha mãe considerava exagerado o meu apego aos livros.

Ou talvez me quisesse apanhar em falso, ver se atrás dos livros vinha um namorado, embora fosse natural. Milhares de raparigas antes e depois de mim começaram a namorar aos 16 anos, mas naqueles primeiros dias de 1987 era apenas eu a tentar perceber como era a vida da cidade, das pessoas da cidade e como podia ser também parte daqueles grupos que se juntavam em frente à Sé e nos cafés novos da marina, eles e elas com roupas unissexo e camisola de lã em cima dos ombros.

O que, sabia eu bem, não ia acontecer tão depressa, sobretudo por causa daqueles horários absurdos e regras de um mosteiro carmelita. E, a cada passeio e cada conversa interrompida para não perder o autocarro do Jamboto, ganhava forma a decisão de enfrentar a minha mãe, de dizer que tinha chegado o momento: dali para a frente era comigo, fosse para o fosse, para o curso, para roupa, para namorar ou ir ao cinema. Não sei bem onde fui buscar a coragem, a minha mãe era difícil, mas apreciava as pessoas inteligentes e de espírito independente. E, no fim, quando fizemos as pazes após brigas daquelas de bater portas, foi o que prevaleceu.

O recolher obrigatório foi alargado até às nove, acabaram-se as recriminações por não ter ido para Ciências e não querer seguir Medicina. Os livros passaram fazer parte da nossa vida no Laranjal e até se arranjou lugar para os meter na estante da sala da televisão. A minha mãe percebeu que, connosco, seria diferente, a nossa vida seria sempre em torno de livros, jornais, textos e até fez o esforço para entender como se podia editar um livro, como era trabalhar numa redação. E, quando os nossos nomes começaram a assinar notícias e reportagens, começou acumular exemplares como guardava as chapas dos bordados.

Não tardou a sentir-se orgulhosa dos dois filhos que, todos os dias, acompanhava até à porta do caminho, enquanto não passava o autocarro. E divertia-se com as nossas roupas pretas, os meus óculos de sol e a barba preta e espigada do meu irmão. Gostava dos sapatos, de nos ver diferentes, nós que tínhamos sido educados por ela, bordadeira de casa, dona de casa pouco dotada, sem estudos além da quarta classe de adultos, mas capaz de perceber que a vida é não igual para todos e que cada um tem uma maneira de a viver, de procurar a felicidade e, às vezes, é preciso ser desafiado e confrontado para entender os outros e a sua diversidade.

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