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Aprender em tempo de pandemia

Uma volta em torno do sol nunca termina sem prévio momento de reflexão, introspeção

e, sobretudo, de renovação da esperança para a nova volta que de imediato se inicia, levado a cabo por iniciativa própria de quem segue à boleia.

Em bom rigor, é tudo psicológico: com algumas exceções, é certo, o primeiro dia de cada ano traz somente a continuidade do que até ali tinha acontecido. Tanto quanto sei não existe um plano anual de ordens divinas para a distribuição singular de mais ou menos

sorte, oportunidades, saúde ou mesmo dinheiro para um determinado ano. Ainda assim,

à chegada das doze badaladas todos fazemos um reinício mental, como se tudo fosse começar novamente do zero. É um reabastecer de esperança que nos permite dar início, fresquinhos e limpos, a um novo ano que se acredita necessariamente diferente do anterior. Este reset mental não é imposto por lei, nem tão pouco é despoletado por outro evento que não o simples decorrer dos dias necessários para perfazer um ano. O resto é trabalho exclusivo das nossas cabeças.

Colocando as coisas desta forma, revela-se fascinante esta nossa relação com o tempo e o seu efeito nas nossas vidas, em especial quando se utiliza o tempo como indício de sucesso, seja profissional ou pessoal.

Na era em que vivemos, das redes sociais, a perceção de tempo e de conquista ou sucesso apresenta-se tão simples quanto fria. É ver a publicação da Joana, que com

apenas vinte e quatro anos já é a CEO da empresa de venda de telemóveis recondicionados que ela próprio criou enquanto ainda estava na faculdade. A do Aníbal,

que pese embora tenha acabado os estudos recentemente, financiados por empréstimo bancário contraído no dia da praxe cujo pagamento integral ainda está longe de concluído, faz questão de partilhar fotografias dos destinos exóticos que regularmente

visita, comentando com os amigos que estes não sabem o que estão a perder. Ou mesmo a do Diogo, que para celebrar o fim da sua primeira semana de trabalho foi tomar um brunch no café da moda, aproveitando a oportunidade para partilhar uma foto do seu pedido - uma tosta com ovos benedict e creme de abacate – e exibir, nessa

mesma fotografia, o seu novo relógio de pulso, tudo embrulhado com os hashtags

#blessed#hardwork#hustle#accomplisments#followyourdreams.

Bombardeados com histórias de sucesso – umas verdadeiras e merecidas, outras meramente ilusórias – entre tantos outros lembretes diários que não nos deixam esquecer que é preciso singrar rapidamente e em tenra idade, consolida-se a banalização do extraordinário e a (im)pressão de que o nosso destino tem de estar

decidido e resolvido, no mais tardar, na fase inicial da vida adulta. Caso contrário significa que perdemos o comboio e fazemos parte do indesejado grupo dos comuns mortais. Acresce que nestas redes sociais que comandam a nossa existência e determinam o padrão do que é tido por normal e aceite – e das quais desde logo me

confesso fiel consumidor – o sucesso e a felicidade surgem intimamente ligados ao consumo e acumulação desenfreada de bens e serviços, impulsos que nunca sossegam nem tão pouco se satisfazem a longo prazo, transformando o sucesso e a felicidade em zonas místicas e intangíveis para grande frustração dos que as procuram por esta via.

Ainda que admitindo tratar-se de uma contribuição modesta, quero acreditar que a pandemia ajudou a reequilibrar a balança. Ela fez perceber que pese embora os

inúmeros avanços oferecidos pela ciência, ainda não atingimos a imortalidade e, por isso mesmo, a vida ou a saúde nunca devem ser dados como garantidos. Que mesmo ligados à sociedade global, onde tudo se encontra à distância de um click, sentimos falta de

estar ligados presencialmente e, de preferência, sem máscara. Que apesar de vivermos em democracia, a liberdade ainda pode ser posta em causa e cabe a todos nós lutar diariamente por ela. Que a segurança e a estabilidade não é total.

Fez perceber, acima de tudo, que é das coisas simples da vida que mais sentimos falta quando delas somos privados. Que, afinal, no mapa para encontrar a felicidade a terra

dos bens e serviços é apenas uma das primeiras etapas do caminho e que talvez nos devêssemos concentrar mais na caminhada em si do que propriamente no destino final.

Estou a torcer para que 2021 seja o ano em que o vírus se torna assunto do passado, bem sabendo o quão difícil foi o ano de 2020 para tantos. Mas olhando para o trajeto

que temos vindo a percorrer desde março passado, fica o consolo de perceber que pelo menos este maldito vírus mostrou que uma vida simples pode, ainda assim, ser uma vida feliz.

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