Crónicas

“A coragem da ‘nuance’”

1. Disco: Os The Killers lançaram um novo trabalho: “Imploding the mirage”. É, talvez, o seu melhor trabalho. A banda já tem um lugar ao sol que ninguém lhe vai tirar. Continuam arrojados. O som está mais sólido.

2. Livro: “Povo vs. Democracia, saiba porque a nossa liberdade está em perigo”, de Yascha Mounk, é um livro importantíssimo de ler. Importante porque põe o dedo na ferida e alerta para os perigos do populismo contra a democracia liberal. Importante porque apresenta os sintomas, descreve a doença e prescreve os remédios. A erosão do sistema, tal qual o conhecemos, é um facto. Para que o recuperemos, torna-se importante a educação, o conhecimento e a recuperação da economia.

3. O francês “Le Monde”, publicou, na última semana do mês passado, uma série de artigos interessantíssimos sob o tema “Le courage de la nuance” - a coragem da nuance - onde apresenta as ideias de alguns grandes pensadores sobre o “pensamento dogmático”, sobre haver quem, com responsabilidade, rejeite o acordo como princípio.

Abrem com o grande Albert Camus. “Próximos da cegueira devido à polémica, deixamos de viver entre homens, mas num mundo de silhuetas. (...) Abafamos no meio das pessoas que pensam ter a razão absoluta”. Segundo o escritor, a mania de colocar entre a vida e o homem um qualquer volume de preceitos ideológicos, impede os entendimentos e o compromisso. “A civilização europeia”, observa, “é, antes de mais, uma civilização pluralista”, onde a multiplicidade vive de opiniões diversas e deve tornar impossível o domínio de uma única verdade.

A ironia de Hannah Arendt é usada para desestabilizar os seus interlocutores, de modo a fazê-los parar por um segundo e a permitir-lhes o olhar para trás. Não pode haver pensamento sem diálogo, porque o “falar consigo mesmo” é uma forma de o fazer. São estas conversas que nos permitem entrar em dissidência connosco e, assim, mudar de ideias. Sem calçarmos os sapatos dos outros, nunca alcançaremos o entendimento.

O terceiro texto é dedicado a Raymond Aron. “A lucidez é a primeira lei do pensamento”, escreveu em 1933. Aron era dono de um pluralismo obstinado. Só se pode entender o pluralismo respeitando e aceitando a opinião do outro. Só se pode ser plural condescendendo e procurando pontos em que possamos acordar. O pluralismo de opinião “tem as suas raízes na tradição da nossa cultura, é justificado, e de certa forma é verificado, pela falsidade das crenças que se esforçam por o negar”. Aron é, acima de tudo, um pensador da prudência, um herói da incerteza. Querer ter a última palavra, é próprio dos obcecados. Tem de haver um equilíbrio entre a consciência crítica e a vontade combativa.

Monárquico, católico, em Georges Bernanos encontramos a convivência da inteligência com a fé. A convivência que nos permite trocar ideias com quem não concordamos e a fé que nos leva a acreditar no que não conseguimos explicar. Para o escritor a mediocridade não tem nada a ver com fraqueza ou ignorância. Ela é uma força espiritual, um poder metafísico, uma perversão da consciência, que mistura irreverência moral, ódio astuto e cegueira paciente. O medíocre é o rei do tempo e o tolo vai sempre preferir o “slogan” redutor à verdade e o crime à liberdade.

O quinto texto do Le Monde leva-nos ao universo de Germaine Tillion, a antropóloga que defende a necessidade de preservar, a todo o custo, o justo e o verdadeiro. Não distorcer os factos, reconhecer os próprios erros, opor o riso à estupidez. São as ferramentas usadas por Germaine de modo a “disciplinar o pensamento”. Na guerra entre a emoção e o rigor, é obrigatório que a verdade seja a vencedora. “A etnologia mantém, ao nível do conhecimento dos povos, um lugar paralelo àquele que é desempenhado pelo diálogo ao nível dos indivíduos: uma viagem de ida e volta incessante de pensamento, incessantemente rectificado”.

A série termina com Roland Barthes, esse grande “dinamitador de clichés”, esse grande adversário da tirania do estereótipo. Ao escrever, “quero viver de acordo com a ‘nuance’”, Barthes renega o determinismo do pensamento. A literatura é a “amante das ‘nuances’”, a defensora da pluralidade, que permite fugir aos que cultivam o maniqueísmo de olhar o mundo como se este fosse a preto e branco. “Reúno na palavra arrogância todos os «gestos» da fala que constituem o discurso da intimidação, da sujeição, da dominação, da afirmação e da soberba”.

Todas as razões são válidas, mesmo aquelas com as quais não concordamos. As razões não são, não podem ser, absolutas. O que é certo hoje, pode ser diferente amanhã. A minha razão, que me induz à certeza, pode mais tarde deixar de o ser. Porque pensamos, podemos sempre mudar de opinião. O equilíbrio é esforço e coragem. Não procura-lo é pura cobardia.

A moderação e o compromisso têm de ser o centro da actuação política nestes tempos que vivemos.

4. Michael Ignatieff escreveu: “para as democracias funcionarem os políticos têm que respeitar a diferença entre um inimigo e um adversário. Um adversário é alguém que se quer derrotar. Um inimigo é alguém que é preciso destruir.” Depois, acrescenta que estamos a matar a democracia, porque permitimos políticos que sustentam posicionamentos “onde uma política de inimigos suplanta uma política de adversários”.

A animosidade, a guerrilha, o mal dizer, a notícia falsa repetida à exaustão, a menorização do debate, o não querer o diálogo, tudo características e sintomas de uma democracia débil por culpa dos seus protagonistas.

Entender a política assim, é também uma forma de populismo. E não estarei longe da verdade se disser que o populismo perpassa pela esmagadora maioria dos partidos portugueses. Este clima de constante guerra, é uma das suas características.

António Lobo Antunes, escritor que admiro e cronista que por vezes me irrita, dizia, e muito bem, recentemente, que “quando somos gente de facto estamos condenados a entender-nos”.

Porque se renega o diálogo e o entendimento, o encontro a meio do caminho, é difícil dar respostas a perguntas que não se conseguem, ou não se querem, fazer.

Não as fazemos porque, além de uma espécie de complexo de Estocolmo político, padecemos de inveja, de egotismo, de horizonte limitado e de uma mórbida necessidade de sentir uma espada em cima da cabeça empunhada por um inimigo, de preferência, externo ou etéreo.

Não nascemos assim. Nascemos, como os outros, sem tirar nem pôr. Mas somos induzidos a isto, a esta letargia estupidificante que nos transforma em seres quase inanimados. Sabemos pouco, pensamos escassamente e não concluímos nada. Esperamos que outros o façam por nós, recusando sermos ambição e a fazer parte do futuro.

Porra, como era bom que acordássemos.

5. “O desmoronamento da política da inevitabilidade anuncia outra experiência do tempo: a política da eternidade. Enquanto a inevitabilidade promete um futuro melhor para todos, a eternidade coloca uma nação no centro de uma história cíclica de vitimização. O tempo já não é uma linha para o futuro, mas um círculo onde se regressa incessantemente às mesmas ameaças do passado. Com a inevitabilidade, ninguém é responsável, porque todos sabemos que as coisas se resolverão pelo melhor; com a eternidade, ninguém é responsável, porque todos sabemos que o inimigo virá independentemente do que fizermos. Os políticos da eternidade promovem a crença de que o governo não pode ajudar a sociedade como um todo, limitando-se a protegê-la das ameaças. O progresso dá lugar à perdição.” – Timothy Snyder

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