E soube tão bem
O futuro entrou em grande, troquei de televisão e telemóvel várias vezes, fiz umas quantas viagens ao estrangeiro, adoptei dois gatos e até mudei de emprego. E o tempo passou, não foi a correr, foram 20 anos.
Quando meti a roupa dentro de um saco de viagem para seguir em frente pareceu-me certo que não voltaria. Estava quase a fazer 30 anos, era tempo de cortar laços e de lançar-me no futuro que, naquele ano do virar do milénio, surgia promissor. Para trás, enquanto descia os degraus da entrada, ficava a infância, as tardes da adolescência em cima do terraço, as horas a ler na sombra da laranjeira e os primeiros anos de vida adulta. E ficava a casa onde me fizera gente e ficava o meu pai, a quem a vida dera uma segunda oportunidade para ser feliz.
Eu sabia que, mesmo que voltasse todos os domingos, as coisas não seriam como antes e, na verdade, não queria ter esse compromisso, estava na idade de ir por aí, viver, experimentar. E a rotina pegou-me pela mão e levou-me de facto por aí, entre trabalho e cansaço e férias, preocupações, sonhos e promessas. O futuro entrou em grande, troquei de televisão e telemóvel várias vezes, fiz umas quantas viagens ao estrangeiro, adoptei dois gatos e até mudei de emprego. E o tempo passou, não foi a correr, foram 20 anos.
Talvez não tenha dado por isso logo, a rotina leva também a noção dos anos, mas quando voltei a subir os degraus da entrada não para ser visita, mas para fazer parte da vida da casa que deixara, o meu pai era um homem a caminho dos 82 e eu uma mulher perto dos 50. A casa estava tão mudada que não parecia a mesma, mas o que nos é intrínseco nunca desaparece. E, aquele lugar, ainda que desconjuntado, é parte da minha história, sou quem sou por ter crescido ali.
Devagar, de mansinho, lá do fundo, começaram a chegar as memórias. Dos namoros ao telefone, quando não estava ninguém em casa, os recibos dos primeiros ordenados guardados nas gavetas e os brincos de prata esquecidos no guarda-jóias que me deram pelos anos. E tudo mais velho, com 20 anos de esquecimento em cima, que se nota nos movéis, nas paredes e nos postais do dia da mãe e do dia do pai feitos na escola e já amarelos, alguns comidos pelas traças e manchados pela humidade que, nos dias frios, se entranha em quase tudo no Laranjal.
Voltei a lembrar-me que ali os dias são muito frios ou muitos quentes e que, no verão, o sol bate em força pelas quatro da tarde e, embora o tempo esteja todo ao contrário, os meses do calor trazem também feijão, bananas, tomate, abóboras, maracujás e enchem as ameixieiras de fruto que nunca se dá vencimento a comer a menos que se transforme em doce. Aquele doce que a minha mãe fazia e que enchia frascos de cevada Pensal. No fim das férias, arrumavam-se um ou dois numa caixa ao lado dos bolos de mel, das anonas e dos abacates. A minha mãe dizia que era para matar saudades em Lisboa.
Foi esse doce, que leva horas a cozer e me traz lembranças dos meus 20 anos, que arrisquei fazer num dia desta semana. E soube-me tão bem.