Crónicas

No mato sem cachorro

Houve, ultimamente, de quase tudo. Um assistencialismo discricionário, cujo desnorte e perversidade começou por orientar, logo na madrugada do desastre, 15 milhões para apaziguar a comunicação social

Por uns tempos, parecia que as coisas iam melhorar. A revolução e a CEE trouxeram o advento, tardio, da social-democracia em Portugal. As massas, sofridas de uma guerra estúpida e de um obscurantismo voluntário e debilitante, pediam essencialmente duas coisas. Primeiro, uma economia que se pudesse chamar “de mercado”, com emprego e salários crescentes. Segundo, um Estado Social mínimo: pensões de velhice, saúde gratuita, educação para todos. Os partidos de centro foram, bem ou mal, cumprindo com estas reivindicações. De caminho, cumpriram com outras ainda: estradas, pontes, telecomunicações, ligações aéreas, uma administração pública e um sistema de justiça que cobrissem o território e funcionassem com uma tolerável regularidade. A Europa fez também o seu papel, e fê-lo talvez mais fundamentalmente. A estabilidade cambial da moeda única pôs termo a uma aflição histórica. A União impôs cultura – e regras – de concorrência que, se não tornaram o país mais competitivo, tornaram-no menos arbitrário e corporativo. Mais relevantemente, o Portugal europeu embalou um cidadão mais globalizado e cosmopolita, que estudava e trabalhava no estrangeiro, lia jornais, conhecia os cantos ao mundo, e sempre ia empreendendo – por vezes falando, por vezes fazendo – os módicos de livre expressão, boa gestão e bom governo que com sucesso vira aplicar lá fora.

Não era uma vida sem vícios, mas havia pelo menos a ilusão de os querer regenerar. Com uma boa dose de candura, seria até possível vislumbrar na crise de dívida de 2009 uma prova de maturidade democrática, que fumigou, a grande custo, os resquícios de uma dívida debilitante e de um mando autocrático, extractivo e impune. Com um pouco mais de inocência, até nos processos do BES, de José Sócrates, e do Apito Dourado se encontrava uma espécie de consagração da independência da magistratura, o teste do algodão a um país como deve ser.

Ficámos, nos últimos meses, esclarecidos quanto a essa ilusão. Já se sabe que o vírus desperta o medo, e que o medo nos devolve às origens. O que é notável é que elas, as origens, permaneçam iguais.

Houve, ultimamente, de quase tudo. Um assistencialismo discricionário, cujo desnorte e perversidade começou por orientar, logo na madrugada do desastre, 15 milhões para apaziguar a comunicação social. Uma obsessão com o “consenso”, um expediente anti-democrático e censório, onde a oposição se cala a troco de uma distribuição dissimulada e irmã de cargos, promessas, protagonismos. O advento do populismo nas presidenciais, que na hora mais negra se preparam para ser acusadas de concorrência desleal por Victor Hugo Cardinalli. Uma árvore das patacas, que a Europa despejou limpando as mãos à parede, com álcool-gel, como fazia antes da pandemia sempre que se deslocava a sul de França. Um plano económico providencial e iluminado, desenhado para, do mesmo passo, deslumbrar a populaça e afirmar o seu comando, assegurando que o dinheiro chove em sossego. Um Estado que consensualmente controla a vida das crianças, com quem se come fora e a que horas se bebe álcool, e censura algumas manifestações de humanidade com um gozo suspeito. Para cúmulo, chegou Operação Lex, que não chocou pelo caruncho no banco da Justiça, nem pelo calor de família entre desembargadores, mas pelo tímido desprestígio com que conspurcou o benfiquismo, de resto uma instituição mais pertinente para a nossa vida colectiva.

Parece novo, mas é um regresso. Não é à toa que as notícias gravitam em torno do Governo, dos clubes, dos grupos de interesse, de Fátima e do PCP. É o retrato de um povoa sem indivíduos, devolvido a uma lógica associativa, de casta, onde todos se debatem, como as Ordens do Antigo Regime, por um assento na corte ou um lugar à mesa do orçamento. Não é decadência, é a cadência precária que nos aguenta, de crise em crise, desde as revoluções liberais.

Há quem goste assim. Um país pequeno, íntimo e pobre, longe da tutela europeia, com um Estado omnipresente e uma burocracia tropical, transpirando corrupção como resíduo natural do exercício atento e amigo do poder. Um país controlado, estagnado, demasiado abafado para a faísca de independência de que dependem os rudimentos da sociedade civil. Uma democracia inibida, mas formalmente estabelecida, ao jeito dos democratas de fachada. A eles, que não são poucos, prestou-lhes o vírus um grande serviço.

Aos outros, resta uma lição antiga, que a nossa geração teve o luxo de esquecer: que a democracia tem tanto de economia que não resiste sem ela. O “mudar de vida” não é uma interpelação filosófica. É um código burguês – e tanso – para um empobrecimento forte e feio, que por inconsciência diverte aqueles que lhe estão imunes. O desafio, o terrível desafio, é não deixar que esse empobrecimento seja também cívico e moral, como malogradamente tem sido. Há dias em que é difícil. Quem gosta da liberdade, e sonhou por instantes com um país inconformado e em fuga da sua sina de indigência e timidez, sente-se por vezes como na expressão brasileira: no mato sem cachorro.

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