Crónicas

A semana em que me tornei a filha

A semana em que perdi a noção e me tornei na filha de um homem de 84 anos a quem o sistema despachou com alta hospitalar e uma receita de antibióticos. Não explicaram muito, estava melhor do que quando entrou e, como os tempos estão contra os velhos, foi para casa sem muitas recomendações. O resto era trabalho do centro de saúde, fosse lá saber. E eu fui, mais ou menos à toa, sem conhecer os cantos à casa e sem ideia a que balcão pedir informação e socorro.

O meu pai estava de cama e, além do carinho e da atenção, pouco mais podíamos dar. Somos pessoas normais, o meu irmão e eu, e nestas coisas das doenças e dos males que chegam com a idade vivíamos até esta semana numa simpática ignorância. Ali estava eu, num dia sombrio, no centro saúde a pedir ajuda às senhoras enfermeiras. O que podia, o que devia fazer? Quem podia ajudar? Acho que cheguei como chegam todos os outros, todos os outros filhos quando percebem que, ao contrário do que diz a propaganda do sistema, o pai, a mãe, a avó não são apenas um assunto de família.

Nós podemos mudar as nossas rotinas, pedir uns dias no trabalho e dar um jeito no horário. E quem pode vira tudo do avesso, faz como eu, vai à toa a ver se alguém ajuda, mas depois há o resto que não se resolve só com amor e tempo. Não fosse a visita da enfermeira Débora e estaríamos a fazer tudo ao contrário e a condenar um homem que, do alto dos seus 84 anos, tenta manter a dignidade e a independência, até contra o luto e as dores que, às vezes, sente. É como diz: viver não é apenas ter os olhos abertos.

O meu pai encontrou sempre maneira de fazer da vida mais do que isso, do que ter os olhos abertos. Em criança, por entre a fome e a humilhação de não ter ardósia para ir à escola, depois em rapaz, quando foi pagar a conta calada do meu avô à mercearia, mais tarde quando deixou de ser moço da fazenda – o nome que os proprietários de terras davam aos criados - e se fez mestre. Depois fez uma casa, empenhou-se na nossa educação. Não foi um homem perfeito, longe disso, mas manteve-se digno, de pé, e é isso que o define, mesmo que a semana tenha sido dura.

A dureza dos dias, também sabe, ameniza com carinho, com amor. O que tem por nós, sem dúvida, mas sobretudo pelo nosso Tonecas, o nosso rafeiro alegre que passou a semana à janela, com direito a visitas à cama. E foi o cão que lhe tirou os melhores sorrisos, que o fez contrariar o cansaço do corpo e lhe deu um dos maiores prazeres: sentar-se por uns instantes no quintal. Sei que há por aí quem ache que se dá demasiada importância aos animais e pouca atenção aos velhos, mas eu vi o que podem fazer uns pelos outros. E não tenho dúvidas de que a vida do meu pai seria mais triste e sem sentido sem o cão que o segue para todo o lado.

O problema não é a importância que se dá aos animais, nem as famílias que, sem meios e sem conhecimento, não sabem o que fazer quando a velhice a doença tornam os pais mais fragéis. O mal está noutro lugar: está no sistema que sacode os mais velhos e assobia para o lado e é incapaz de dotar os centros de saúde de mais enfermeiros para responder a todas as solicitações. E são muitas, tantas, não páram, o envelhecimento não é uma estatística, são histórias reais, com gente dentro. A história do meu pai é apenas uma.

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