A lição da Arte
Quando, no dia 12, menos de três horas antes do início, foi cancelado o concerto da Orquestra Académica do Conservatório, devido à previsão meteorológica de chuva iminente, não foi possível não se empatizar com o desapontamento de quase sessenta jovens músicos que ansiavam por demonstrar o fruto do seu trabalho no âmbito do 4º estágio da orquestra no Conservatório. Ficaram dececionados também todos os jovens que, antes do início do concerto, iriam receber diplomas de vários níveis de ensino administrado no Conservatório e assim iriam ver publicamente reconhecidos a sua dedicação, trabalho e talento em música, teatro e dança, as três áreas artísticas administradas na escola.
Felizmente, o concerto e a cerimónia foram reagendados para o dia 20, no auditório do Centro de Congressos da Madeira, se bem que com o número das entradas bastante mais restrito.
É notório que, em todo lado, os públicos apenas estão a começar a regressar aos auditórios. A sensação de insegurança e os números novamente ameaçadores de infeções estão a condicionar o desejo para o regresso ao modo de vida “regular” e às atividades e gozo da vida que nos completam e contribuem para a nossa felicidade. O regime “aperta-afrouxa” já é uma realidade incontornável para a grande parte da humanidade. Questiona-se, legitimamente, não só o equilíbrio certo entre o desejável e o possível, como propriamente a definição destes termos em contexto da perda da vida e da economia. As salas de espetáculos estão bastante restritas nas suas condições de funcionamento, mas, geralmente, estão abertas. Em Madrid, no domingo passado, o espetáculo operático no emblemático Teatro Real teve de ser abandonado depois de vários membros de público se terem queixado vociferantemente da falta de distanciamento social. Em Moscovo, há duas semanas, a grande soprano Anna Netrebko foi infetada praticamente enquanto cantava no palco do Bolshoi. Já a recuperar, a cantora disse que mesmo assim nunca se iria arrepender, uma vez que tomou a decisão de não ficar amedrontada em casa mas sim de continuar a cantar e a viajar, com plena consciência do risco, e com todo o cuidado possível.
Depois de seis meses de uma ausência praticamente total dos espaços públicos, também fiquei durante algum tempo a deliberar sobre a prudência de assistir ao concerto reagendado no dia 20 e partilhar o ar com outras centenas de pessoas, num espaço fechado e por vontade própria. A nossa situação regional deve ser das melhores do mundo, das áreas por onde se espalhou o vírus, mas a estatística é sempre uma média e o “isso nunca vai acontecer a mim” já foi desmentido por inúmeros casos e destinos lamentáveis de “incrédulos”. Onde e como encontramos o equilíbrio entre a cautela e o esmorecimento da vida? No senso comum? E como é que esse se define hoje em dia? Onde é que reside? No palpite? Na ciência? Na fé? Nos tweets do Trump?
De qualquer maneira, sempre fui ao concerto, e encontrei a resposta ali. Estava nas caras dos jovens, iluminadas pelo entusiasmo e orgulho. Nos seus olhos cintilantes que pulsavam com a música. No ambiente de partilha que levou o público a aplaudir de pé e na emoção que todos levámos daquela sala e que nos abrilhantou o resto do dia.
Se, biologicamente falando, o propósito de qualquer vida é a sobrevivência da espécie, humanamente falando, a mera sobrevivência não pode substituir nem é o propósito da Vida. A Vida tem de valer a pena ser vivida. O cuidado não precisa de implicar o medo. E uma experiência artística ao vivo abençoa-nos com a sensação da plenitude e valoriza a nossa vida. Por isso, a vida de hoje em dia, com toda a cautela aconselhável neste momento, não implica forçosamente privarmo-nos daquilo que a Vida nos pode oferecer. Os jovens intérpretes deste concerto assimilaram esta mensagem, tacitamente incorporada na sua experiência, com toda a naturalidade, espontaneidade e descomplicação características da sua idade. Para todos conseguirmos continuar a viver a vida de uma maneira digna e plena, talvez cada um de nós precise de um pouco do “remédio Netrebko” – q.b.