E estamos nisto
A televisão está quase sempre no máximo e o Tonecas entra e sai da sala, sobe e depois desce do sofá, arfa de alegria e só se dá por vencido ao fim de 10 minutos, quando se estende no chão, nos pés do meu pai
Eu, nos dias em que vou mudar o adesivo ao meu pai, fico para ver o ‘Preço Certo’, não há velho acima de 80 que perca um programa ou que deixe de torcer por quem vai a montra final. O meu pai sabe que às vezes vem com mota, outras traz um carro e, na maior parte das vezes, o concorrente vai para casa de mãos a abanar. A regra é simples, é fazer contas e isso não custa muito e, depois, temos motivo de conversa, sobre o preço das coisas, sobre o que está caro, o que agora se vende, que no tempo dele não havia cá esta maravilha de se vender tudo o que se precisa e o que não se precisa.
A televisão está quase sempre no máximo e o Tonecas entra e sai da sala, sobe e depois desce do sofá, arfa de alegria e só se dá por vencido ao fim de 10 minutos, quando se estende no chão, nos pés do meu pai. São as nossas melhores tardes: o cão, o meu pai e eu na sala a vermos o concurso da televisão onde se tenta adivinhar os preços das coisas. Tenho prometido um secador de cabelo dos bons para o Natal, disse-me que mo dava quando recebesse o subsídio.
Acho que não quer que faça má figura, não deixei de ser a menina por quem subia a vereda dos Prazeres quando andava pelo campo, o patrão dava casa, comida e pagava mais, muito mais. Falamos disso noutro dia, mas ao lanche que agora é também parte da história. Chá de hortelã e bolacha com doce, o dele leva leite e o Tonecas não nos larga, também gosta de bolachas. E, do lado de fora porta da cozinha, o dia desaparece devagar. Às vezes, vou levantar os ovos e apanhar maracujás, o meu pai gosta quando os embrulho e levo, nasce-lhe um sorriso na cara.
Eu, mesmo quando lhe troco os adesivos nas costas por causa das dores, quase me esqueço que é um homem velho, cansado, que carrega os azares da idade, a doença e o desgaste. Dá-me a ideia de que é possível tê-lo assim, de cabelo branco, com a televisão no máximo, a fazer-me o chá com a delicadeza que reserva só para mim, mas a nossa história não é só aqui, na casa do Laranjal, onde, volta e meia, um galo canta no galinheiro.
A nossa vida é também no hospital, onde esperamos por exames, por consultas, onde vamos dar conforme o capricho do corpo. E sim, já nos calharam as Urgências, onde uma enfermeira, vestida com o rigor deste tempo de pandemia, nos separou à entrada. Não lhe valeu ter 84 anos e ouvir mal, as ordens são claras. Se quiser espera cá fora, na sala dos acompanhantes e contente-se com as mensagens no telemóvel. E eu esperei como a senhora de cabelo branco, o marido não fala, mas isso não lhe valeu, nem ao outro senhor que me pediu para ler as mensagens que lhe chegavam ao telemóvel.
Ficamos por ali, todos, fora da sala de espera, às vezes encostados na parede; outras na beira dos canteiros. Um a um, fizemos o mesmo caminho, de ir mendigar informações à secretaria. Sabe mais alguma coisa? As senhoras diziam para aguardar ou lá cortavam pelas urgências para trazer notícias, foram o alento naquele dia, ali, na porta do serviço, a rodar da parede para o canteiro, da sombra para o sol a tentar manter a distância social e com a bateria do telefone a sumir-se e aquela impressão de não ser capaz de fazer melhor.
Era quase noitinha quando ouvi o meu nome na porta. Havia novidades e, mais importante, a médica franqueou-me a entrada, podia ver o meu pai, tinha de ser breve. E fui, a zizaguear pelas urgências entre macas e doentes, até à marquesa onde o tinha posto. Aquelas horas ali, sem perceber tudo o que lhe diziam, fizeram mossa no homem forte, estava nervoso, preocupado com o nosso Tonecas e, por um momento, pareceu derrotado. Fi-lo prometer que ia dar luta, ele enxugou a lágrima, olhou-me a direito e disse que sim, ia sair dali.
A nota da alta veio umas horas depois, por mensagem.