Sem fins lucrativos
Martha Nussbaum, importante filósofa americana nascida em 1947, é uma referência obrigatória sempre que temos de abordar certos temas, à volta dos quais consolidou a sua vastíssima obra. Educação, ética, justiça, filosofia grega, artes e humanidades — eis alguns tópicos nucleares de uma reflexão fundamental, glosada em dezenas de títulos, de que apenas dois estão editados em Portugal: “Educação e Justiça Social”, de 2014, e “Sem fins Lucrativos”, de 2019. É esta obra que tomamos aqui como referência.
Neste tempo em que o debate na Educação parece girar à volta do que o Estado pretende ensinar às criancinhas, “endoutrinando” para um suposto correto exercício da cidadania, pouco se discutindo o modelo político e filosófico que subjaz ao chamado “sistema educativo”, parece da máxima pertinência pegar na visão de Nussbaum exposta neste livro, que, precisamente, tem como subtítulo “Porque precisa a Democracia das Humanidades”.
O “desastre” já se iniciou há muito, quando, praticamente à escala global, a Educação se tornou um “instrumento” do Produto Nacional Bruto, orientada para a produção de competências quantificáveis e prevalentes no “crescimento económico” da nação. Foi, assim, progressivamente reduzido nos “curricula” todo o leque disciplinar das chamadas Humanidades, designadamente a filosofia, as artes, a literatura e as línguas clássicas (o latim e o grego, com um lugar decorativo, e inútil, nos programas escolares). A pressão dos grandes mecenas internacionais para que as Universidades privilegiem cursos-contribuinte-líquido do PIB, em detrimento de programas virados para Artes e Humanidades, é bem um sintoma do afunilamento moral do sistema, que contraria o que deveria ser uma visão capaz de impregnar políticas educativas orientadas para o “Desenvolvimento Humano”, e não apenas para o “crescimento económico”.
Qual a tese de Nussbaum? Que as Humanidades são indispensáveis à boa saúde da Democracia: o ensino dos clássicos e das artes liberais, o conhecimento da literatura e da filosofia, proporcionam a aquisição de competências reforçadas nas áreas do pensamento crítico, da imaginação, da empatia e da ética, que são cruciais para as práticas salutares da cidadania, da inovação, da solidariedade e da justiça. Percecionar uma certa “poética da existência”, sentir o outro como pessoa igual a mim, com direitos e deveres, que interroga a complexidade do mundo, mas que busca também o sentido e a felicidade, e que não é um mero (re)produtor, eis o que advém do estudo daquelas disciplinas, propensas a uma verdadeira pedagogia integrada — a famosa “Paideia” grega — da inteligência com a sensibilidade, da imaginação com a compaixão. Isto levaria os Estados “a não descartar levianamente competências que são necessárias para manter as democracias vivas”, sem continuar a “produzir gerações de máquinas úteis, em vez de cidadãos completos que conseguem pensar por si próprios, criticar a tradição e compreender o significado do sofrimento e das conquistas dos outros”. Não havendo vigilância crítica e perceção humana do outro, resta a acomodação dócil e a inépcia moral, que sempre fizeram a preferência do poder instituído! Só a reintrodução do “espírito das humanidades” pode revitalizar uma democracia que não submerge o humano no turbilhão competitivo da ganância e do lucro, com cidadãos que aprenderam a pensar e que se recusam a ser massas amorfas, sujeitadas e formatadas para o (ab)uso e a manipulação.