Pensar é higienizar
Em Março, uma turista holandesa foi o primeiro caso reportado da doença COVID 19 na Madeira. Um misto de irracionalidade e medo instalava-se.
A senhora foi, entre bocas domésticas amaldiçoada por tudo e por nada, pois seria o primeiro marco da infecção no arquipélago que se estava a fechar ao mundo e aos turistas num forçar férreo do encerramento das nossas portas, tal como se ordenássemos o nosso coração a parar de bombear sangue, e pudéssemos ainda assim sobreviver. O medo é muito eficaz nas primeiras fases de confinamento. Actuamos em manada e somos maioritariamente obedientes perante o desconhecido, apelando ao instinto básico e anuindo sem pestanejar. A resposta da RAM permitiu-nos passar incólumes sem grandes sobressaltos e sobretudo (ainda) não averbámos nenhuma fatalidade.
Em Itália veríamos aqueles camiões do exército repletos de caixões a desfilar morbidamente em Bérgamo. O Palácio de Hielo em Madrid foi transformado numa improvisada morgue. Na cosmopolitana Big Apple contentores frigoríficos amontoavam-se junto dos hospitais de frenética Nova Iorque, enquanto valas comuns eram abertas em Hart Island a leste do Bronx, para sepultar vítimas do coronavírus.
Noutras latitudes eram reportados outros dramas desgraçadamente icónicos que reforçavam a gravidade da pandemia de rédea solta.
Longe de podermos estar refeitos deste pesadelo global e com mais dúvidas do que certezas, temos alguns dados irrefutáveis. Desde logo, já vimos que não temos economia, nem riqueza para nos confinarmos novamente nos mesmos moldes. Do “medo” da infecção juntámos o pesadelo da falta de rendimento, desemprego e pobreza, com a promessa dum tiro duma “bazuca financeira” oriunda da Europa, onde de mão estendida fomos (outra vez) cabisbaixos mendigar, sem bem sabermos como iremos pagar esse futuro maná dos Céus.
Como quase sempre num argumento romanceado há sempre um cunho de mistério, que tempera a negação da realidade num aparente inócuo paliativo que aliena os espíritos empapados em delírio sofrido. As teorias conspiratórias pulsam no imaginário fantástico e percorrem as artérias da comunicação livre e sem filtro. Cresce a noção duma mão invisível, mas tentacular, que saliva por controlar o mundo e até aniquilar a espécie humana reduzindo-a para números comportáveis aos recursos disponíveis. Se juntarmos a este cocktail fantástico o enorme desconhecimento e medo, temos um manancial inesgotável de argumentos para a indústria da sétima-arte desde Hollywood até às plataformas de “streaming”.
Nesta era onde o caldeirão da informação regurgita tudo e o seu contrário a uma velocidade estonteante, há que serenar. Tal como (antes) lavávamos as mãos ao chegar a casa, talvez não fosse má ideia voltarmos a pensar por nós próprios, e deixarmos de ir atrás de dogmas disruptivos que virilizam por aí, com aquele prazeroso arrepio da pele, apenas porque é diferente e dá um bom argumento na rubrica de cinema fantástico. Essa atitude é proporcionalmente adequada aos canais convencionais que repetem até à exaustão os conteúdos nem sempre devidamente maturados do tempo “sem tempo”. Pensar e reservar tempo para esse exercício, é também uma higienização tão importante quanto a lavagem das mãos.