A Fragilidade
Dois teólogos, duas entrevistas, duas citações:“(o confinamento) abalou-nos profundamente. Somos tremendamente frágeis. A Humanidade pensava-se omnipotente e neste momento temos problemas graves para resolver (...) Vamos mesmo ter de mudar o paradigma, a não ser que queiramos viver na distopia” (Anselmo Borges, E-Revista, 15 de agosto).
“(...) o que esta pandemia mais abala são as certezas que nós achávamos que estavam garantidas pela ciência e pela técnica. Hoje temos noção maior de uma fragilidade que ignorávamos. Achávamo-nos dentro de um sistema infalível. Hoje, percebemos os seus limites” (José Tolentino Mendonça, Visão, 20 de agosto).
Não creio que o vírus tivesse surgido para nos dar uma lição: ele é um fenómeno da natureza, não tem emoção nem moral e, como diria o velho Caeiro, a natureza é só a natureza... Os elementos estão aí desde sempre, a evolução trouxe-nos ao que somos, bactérias e vírus sempre nos foram inseparáveis. Sendo a natureza o que é, exterior ao bem e ao mal, ela não guarda represálias para connosco. Ao contrário, nós é que “lemos” a natureza, a sua interpretação e sentido decorrem sempre da razão humana: nós é que — face ao mundo da natureza e à natureza do mundo — decidimos o que fazer nela e com ela, fundo primordial donde a vida emerge em campo de possibilidades. Logo, não é plausível que a pandemia traga uma intencionalidade específica quanto aos humanos. Ela é como é: férrea e determinista, segue a sua lógica própria. Mas, já que temos de sofrê-la, será melhor encontrarmos nesse processo uma razão, uma motivação para a luta, um sentido para a afirmação da vida.
O processo emancipatório que começou nas Luzes, instaurou a racionalidade como marca da Modernidade: o homem torna-se o ponto de referência da realidade, o abandono da tradição e a atitude crítica irão possibilitar as modernas ciências experimentais. Mais tarde, o século XX irá fazer a experiência trágica do “fim do caminho”, quando a absolutização da ciência e a sua materialização “industrial” por políticas perversas acabaram por levar à morte milhões de seres humanos, precisamente na Europa das Luzes e no coração da civilização cristã ocidental! Filosofias humanistas vieram, depois, recolocar o homem no centro das preocupações, mas agora a partir de um patamar de verdade: a redescoberta da finitude do ser humano e, na vulnerabilidade, a sua eterna busca do sentido e da liberdade, apesar da propensão para o mal. Hoje, com o fascínio pela futurologia científica e técnica que mitifica as possibilidades de re-construção do humano até ao horizonte do “Homo Deus” (veja-se as propostas de Harari), a história segue o seu curso de grandezas e misérias, e não há como iludir mais o “proprium” da condição humana.
Bem andados já no século XXI, eis que na caminhada triunfal (ciência, técnica, economia) para um almejado futuro brilhante, nunca deixámos, afinal, de ser pó e cinza, a dor e a injustiça feitos coveiros de um mundo para o qual acordámos: a pandemia tornou-se o pandemónio da economia global e da vida arrumadinha das sociedades avançadas. O vírus não nos quer ensinar nada. Mas, já que temos de viver com ele, ajudará alguma coisa se questionarmos os nossos modelos e paradigmas e se nos (re)colocarmos, com menos ganância e orgulho insensato, bem no centro da nossa realidade real.
A vida tem muitos nomes: fragilidade é um deles.